domingo, 31 de julho de 2011

Crack


A ação da droga no Sistema Nervoso Central

A dependência é uma complicação que pode ocorrer entre usuários de cocaína e crack. A dependência se caracteriza pela perda de controle do uso e por prejuízos decorrentes dele nas diversas esferas da vida: pessoal, familiar, trabalho, lazer, judicial, etc.
Quando a cocaína é fumada na forma de crack, o vapor aspirado é rapidamente absorvido pelos pulmões, alcançando o cérebro em 6 a 8 segundos. Quando a droga é injetada nas veias demora de 16 a 20 segundo e quando cheirada demora de 3 a 5 minutos para atingir o mesmo efeito. Fumar o crack é a via mais rápida de fazer com que a droga chegue ao cérebro e provavelmente esta é a razão para a rápida progressão para a dependência Comparando o uso de crack com outras formas de uso da cocaína, há uma proporção maior de uso intenso e de aumento da fissura entre os que usam crack.

Danos Físicos
Intoxicação

Os efeitos do crack aparecem quase imediatamente depois de uma única dose. Estes efeitos incluem aceleração do coração, aumento da pressão arterial, agitação  psicomotora, dilatação das pupilas, aumento da temperatura do corpo, sudorese, tremor muscular. A ação no cérebro provoca sensação de euforia, aumento da auto-estima, indiferença à dor e ao cansaço, sensação de estar alerta especialmente a estímulos
visuais, auditivos e ao toque. Os usuários também podem apresentar tonteiras e idéias de perseguição (síndrome paranóide).

Abstinência

Os sintomas de abstinência começam a aparecer de 5 a 10 minutos após o uso. Os sintomas principais são: fadiga, desgaste físico, desânimo, tristeza, depressão intensa, inquietação, ansiedade, irritabilidade, sonhos vívidos e desagradáveis e intensa vontade de usar a droga (fissura). O auge da abstinência ocorre em 2 a 4 dias. As alterações do humor podem durar meses.

Efeitos do Crack no Corpo

Os principais efeitos do uso do crack são decorrentes da ação local direta dos vapores em alta temperatura (como queimaduras e olhos irritados) e dos efeitos farmacológicos estimulantes da substância.

Nas Vias Aéreas

O pulmão é o principal órgão exposto aos produtos da queima do crack. Os sintomas respiratórios agudos mais comuns são: tosse com produção de escarro enegrecido, dor no peito com ou sem falta de ar, presença de sangue no escarro e piora de asma. Atenção especial deve ser dada ao tratamento de pacientes com tuberculose. Muitas vezes estes pacientes convivem em ambientes fechados, dividem os instrumentos
de consumo da droga e apresentam baixa adesão ao tratamento favorecendo, desta forma, a disseminação do bacilo da tuberculose.

No Coração

O uso do crack provoca o aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial, podendo ocorrer isquemias, arritmias cardíacas, problemas no músculo cardíaco e infartos agudos do coração.
E 2
No Sistema Nervoso Central

As principais complicações neurológicas do uso de crack são acidente vascular cerebral (derrame cerebral), dor de cabeça, tonteiras, inflamações dos vasos cerebrais, atrofia cerebral e convulsões.

Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS

O consumo de crack e cocaína têm sido associados diretamente à infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e outras doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), como gonorréia e sífilis. Os comportamentos de risco mais frequentemente observados são o número elevado de parceiros sexuais, o uso irregular de camisinha e troca de
sexo por droga ou por dinheiro para compra de droga. Deve ser levada em consideração a vulnerabilidade social a que estão expostas as usuárias de crack, que trocam sexo pela droga ou por dinheiro para comprála. Não devemos esquecer que há a possibilidade de transmissão de HIV através de lesões orais e labiais causadas pelos cachimbos.
Em estudo realizado em Salvador, mostrou a prevalência de HIV de 1,6% entre usuárias de crack, percentual maior que a prevalência brasileira (0,47%), porém menor que estudos realizados com usuários de drogas não injetáveis na cidade de São Paulo (11%). O estudo atribui este achado a ações de redução de danos que ocorrem nas proximidades
do local de seleção das entrevistadas. Este mesmo estudo aponta que cerca de um terço das entrevistadas já haviam tido relações sexuais em troca de dinheiro ou droga.

Fome, Sono e Sexo

O uso de crack pode diminuir temporariamente a necessidade de comer e dormir. Muitas vezes os usuários saem em “jornadas” em que consomem a droga durante dias seguidos. Podem ocorrer redução do apetite, náusea e dor abdominal. Frequentemente, a alimentação e o sono ficam prejudicados, ocorrendo processo de emagrecimento e esgotamento físico. Os hábitos básicos de higiene também podem ficar comprometidos. O crack pode aumentar o desejo sexual no início, porém com o uso continuado da droga, o interesse e a potência sexual diminuem.

Na Gravidez (gestante e bebê)

O crack, quando consumido durante a gestação, chega à corrente sanguínea aumentando o risco de complicações tanto para a mãe quanto para o bebê. Para a gestante, aumenta o risco de descolamento prematuro de placenta, aborto espontâneo e redução da xigenação uterina. Para o bebê, o crack pode reduzir a velocidade de crescimento fetal, o
peso e o perímetro cefálico (diâmetro da cabeça) ao nascimento. Há ainda riscos de má-formação congênita, maior risco de morte súbita da infância, alterações do comportamento e atraso do desenvolvimento. O crack passa pelo leite materno.

Associação com Bebidas Alcoólicas

Se o crack for fumado associado ao consumo de bebidas alcoólicas, as duas substâncias podem se combinar formando a cocaetileno. Essa substância tóxica produz um efeito mais intenso que o crack sozinho e aumenta o risco de complicações.

Outros

Várias situações já foram relacionadas ao uso de crack, como lesões do fígado, dos rins, dos músculos, intestinais, queimaduras em mãos, boca, nariz e rosto e lesões oculares pelo efeito tóxico e por queimadura.

Danos Psíquicos

O crack afeta o cérebro de diversas maneiras. A ação vasoconstrictora (contração dos vasos sanguíneos) diminuiu a oxigenação cerebral, alterando tanto o funcionamento quanto a estrutura do cérebro. O uso do crack pode prejudicar as habilidades cognitivas (inteligência) envolvidas especialmente com a função de planejamento, tomada de
decisões e atenção, alterando a capacidade de solução de problemas, a flexibilidade mental, a velocidade de processamento de informações e a “regulagem das emoções” (referindo-se à capacidade de entender e integrar as emoções com outras informações cerebrais) e também o controle de impulsos. O prejuízo cognitivo pode interferir na adesão destes pacientes ao tratamento proposto e na elaboração de estratégia de enfrentamento de situações de risco. Alguns efeitos revertem rapidamente e outros persistem por semanas mesmo depois da droga não ser mais detectável no cérebro. A reversibilidade destes efeitos com a abstinência prolongada ainda é incerta. As alterações cognitivas devem ser levadas em conta no planejamento do tratamento destes pacientes.

Quadros Psiquiátricos

A presença de problemas relacionados ao uso de outras substâncias psicoativas e a presença de outro(s) diagnóstico(s) psiquiátrico(s) (comorbidade) é comum entre usuários de cocaína e crack. Os quadros psiquiátricos mais relatados são transtornos de personalidade, quadros depressivos, quadros ansiosos, instabilidade do humor, idéias paranóides ou mesmo quadros psicóticos francos, com delírios e alucinações. Sintomas agressivos estão mais relacionados ao uso de crack que a outras vias de uso da cocaína.
A presença de uma comorbidade aumenta a gravidade do quadro de uso de substâncias e o uso de crack aumenta a gravidade da comorbidade. Do mesmo modo, o tratamento da condição associada (as duas doenças juntas) permite melhor prognóstico em relação ao uso de crack.

Consequências sociais

Em São Paulo, um estudo com profissionais do sexo que usam crack mostrou que a maioria destas mulheres é jovem, mãe, com baixa escolaridade, vive com familiares ou parceiros e é sustentada por elas mesmas. A maioria trocava sexo por crack diariamente (de um a cinco parceiros por dia), não escolhia nem o parceiro, nem o tipo de sexo, nem exigia o uso da camisinha. Outro estudo sobre mulheres trabalhadoras do sexo em Santos mostrava a associação entre uso do crack, uso de cocaína injetável e positividade para o HIV. Também em São Paulo, estudo de seguimento (follow-up) de cinco anos de 131 pacientes que estiveram internados mostrou que 18% morreram no período estudado. A taxa de mortalidade anual (2,5%) era sete vezes maior do que a da população geral da cidade. A maioria dos que morreram eram homens de menos de 30 anos, solteiros com baixa escolaridade. As causas externas foram responsáveis por 69% destas mortes sendo 56,6% por homicídio, 8,7% por overdose e 4,3% por afogamento. Entre as causas naturais (não externas), 26,1% foram por HIV/AIDS e 4,3% por Hepatite B.

Maconha


É o nome dado no Brasil à Cannabis sativa. Suas folhas e inflorescências secas podem ser fumadas ou ingeridas. Há também o haxixe, pasta semi - sólida obtida por meio de grande pressão nas inflorescências, preparação com maiores concentrações de THC (tetrahidrocanabinol), uma das diversas substâncias produzidas pela planta, principal responsável pelos seus efeitos psíquicos.
UNIDADE 1
Há uma grande variação na quantidade de THC produzida pela planta conforme
as condições de solo, clima e tempo decorrido entre a colheita e o uso, bem
como na sensibilidade das pessoas à sua ação, o que explica a capacidade de a
maconha produzir efeitos mais ou menos intensos.

Efeitos psíquicos agudos

Esses efeitos podem ser descritos, em alguns casos, como uma sensação de bem-estar, acompanhada de calma e relaxamento, menos fadiga e hilaridade, enquanto, em outros casos, podem ser descritos como angústia, atordoamento, ansiedade e medo de perder o autocontrole, com tremores e sudorese.
Há uma perturbação na capacidade de calcular o tempo e o espaço, além de um prejuízo da memória e da atenção. Com doses maiores ou conforme a sensibilidade individual, podem ocorrer perturbações mais evidentes do psiquismo, com predominância
de delírios e alucinações.

Efeitos psíquicos crônicos

O uso continuado interfere na capacidade de aprendizado e memorização. Pode induzir um estado de diminuição da motivação, que pode chegar à síndrome amotivacional, ou seja, a pessoa não sente vontade de fazer mais nada, tudo parece ficar sem graça, perder a importância.

Efeitos físicos agudos

Hiperemia conjuntival (os olhos ficam avermelhados); diminuição da produção da saliva (sensação de secura na boca); taquicardia com a frequência de 140 batimentos por minuto ou mais.

Efeitos físicos crônicos

Problemas respiratórios são comuns, uma vez que a fumaça produzida pela maconha é muito irritante, além de conter alto teor de alcatrão (maior que no caso do tabaco) e nele existir uma substância chamada benzopireno, um conhecido agente cancerígeno. ocorre, ainda, uma diminuição de 50% a 60% na produção de testosterona dos homens, podendo haver infertilidade.

Cocaína

É uma substância extraída de uma planta originária da América do Sul, popularmente conhecida como coca (Erythroxylon coca). A cocaína pode ser consumida na forma de pó (cloridrato de cocaína), aspirado ou dissolvido em água e injetado na corrente sanguínea, ou
sob a forma de uma pedra, que é fumada, o crack. Existe ainda a pasta de coca, um produto menos purificado, que também pode ser fumado, conhecido como merla. Seu mecanismo de ação no SNC é muito semelhante ao das anfetaminas, mas a cocaína atua, ainda, sobre um terceiro neurotransmissor, a serotonina, além da noradrenalina e da dopamina.
A cocaína apresenta, também, propriedades de anestésico local que independem
de sua atuação no cérebro. Essa era, no passado, uma das indicações de uso médico da substância, hoje obsoleto. Seus efeitos têm início rápido e duração breve. No entanto, são mais intensos e fugazes quando a via de utilização é a intravenosa ou quando o indivíduo utiliza o crack ou merla.

Efeitos do uso da cocaína:

• sensação intensa de euforia e poder;
• estado de excitação;
• hiperatividade;
• insônia;
• falta de apetite;
• perda da sensação de cansaço.

Apesar de não serem descritas tolerância nem síndrome de abstinência inequívoca, observa-se, frequentemente, o aumento progressivo das doses consumidas. Particularmente, no caso do crack, os indivíduos desenvolvem dependência severa rapidamente, muitas vezes, em poucos meses ou mesmo algumas semanas de uso. Com doses maiores, observam-se outros efeitos, como irritabilidade, agressividade e até delírios e alucinações, que caracterizam um verdadeiro estado psicótico, a psicose cocaínica. Também podem ser observados aumento da temperatura e convulsões, frequentemente de difícil tratamento, que podem levar à morte se esses sintomas forem prolongados. Ocorrem, ainda, dilatação pupilar, elevação da pressão arterial e taquicardia (os efeitos podem levar até a parada cardíaca, uma das possíveis
causasde morte por superdosagem).

Drogas: classificação e efeitos no organismo

Fator de risco de infarto e Acidente Vascular Cerebral (AVC)
Mais recentemente e de modo cada vez mais frequente, verificam-se alterações persistentes na circulação cerebral, em indivíduos dependentes de cocaína. Existem evidências de que o uso dessa substância seja um fator de risco para o desenvolvimento de infartos do miocárdio
e acidentes vasculares cerebrais (AVCs), em indivíduos relativamente jovens. Um processo de degeneração irreversível da musculatura (rabdomiólise) em usuários crônicos de cocaína também já foi descrito.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Usuários e traficantes

Folha de São Paulo

Decisões judiciais contrariam propósito de lei de 2006 ao encarcerar portadores que deveriam receber advertência e outras penas alternativas

Em 2006 entrou em vigor a lei nº 11.343, que pretendia diferenciar o traficante do usuário de drogas. Para o primeiro, estipulava pena de prisão de 5 a 15 anos; para o último, só uma advertência ou outras medidas alternativas.
O caminho parecia interessante e promissor: uma política dura para os que enriquecem com a dependência alheia e uma abertura para tratar usuários como parte vulnerável de um problema de saúde pública, e não de polícia.
A expectativa era que menos detidos terminassem enquadrados como traficantes. Desde a entrada em vigor da lei, contudo, houve aumento de 118% no número de presos por tráfico de drogas.
A notícia de que há mais traficantes na prisão deveria ser comemorada. Para tanto, teria de corresponder a um enfraquecimento do crime organizado e a uma redução do consumo no país.
Não há, porém, indício de diminuição do consumo no período. Além disso, segundo a agência da ONU para drogas e crimes, o Brasil consolidou-se, de 2005 a 2009, como entreposto de drogas entre a América Latina e a Europa.

O aumento do número de prisões não se concentra em traficantes integrados a organizações criminosas. Os dados mostram que são presas em maior quantidade, por crimes que envolvem drogas, pessoas que portavam pequenos volumes da substância proibida e não cometeram outros delitos.
Como a lei não estabelece uma fronteira clara, os juízes usam critérios díspares para estabelecer quem é usuário e quem é traficante. Por excesso de zelo, ou conservadorismo, alguns magistrados tendem a classificar a maioria dos portadores como malfeitores. Contrariando o espírito da lei de 2006, muitos usuários acabam presos por tráfico de drogas.
Em 19 de junho, este jornal defendeu que caberia diminuir o arbítrio dos juízes na definição entre usuários e traficantes, por meio da fixação de uma quantidade específica. Seria um dos passos iniciais para uma política de progressiva descriminalização da maconha, que poderia ser sucedida por outras substâncias, após avaliação criteriosa da iniciativa.
Países como Portugal, Espanha, Bélgica e México, assim como 13 Estados norte-americanos, estabeleceram que apenas a posse acima de determinada quantidade é criminalizada. É chegada a hora de o Brasil se reunir a esses países e alterar a lei para estabelecer critérios quantitativos de distinção entre usuários e traficantes.
Apenas assim a política nacional sobre drogas deixará de superlotar prisões com as vítimas do tráfico e se concentrará sobre o essencial: proteger o usuário e combater o crime organizado.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Depoimentos dramáticos de quem luta contra o crack

Antes restrita a indigentes que perambulam pelo centro, o crack hoje é consumido por paulistanos de todas as classes sociais

Henrique Skujis e Maria Paola de Salvo

FONTE: REVISTA VEJA

As histórias contadas por usuários e ex-usuários de crack são chocantes. Sempre. Quem cai nas teias dessa droga derivada da cocaína tem em um curto espaço de tempo a saúde devastada, as relações sociais destruídas e a vida destroçada. São depoimentos crus, sem meias palavras, que humanizam estatísticas cada vez mais alarmantes. Dados da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostram um crescimento de 42% no número de viciados em crack que procuraram tratamento entre 2005 e 2009 no Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad).
Os relatos têm suas evidentes particularidades, mas se parecem ao mostrar que o usuário mergulha em total perda de contato com a realidade e em uma tamanha dependência que nada, absolutamente nada, é mais importante do que a próxima pedra a ser fumada. Emprego, amigos e família (pais, cônjuge e até os próprios filhos) desabam na escala de valor de quem está possuído pela droga. “O crack é a droga da amoralidade. Faz o usuário virar um homem de Neandertal”, afirma o psiquiatra Pablo Roig, especialista em dependência química e dono da clínica Greenwood, em Itapecerica da Serra — lá, 60% dos pacientes internados são viciados em crack; até 2000, essa estatística beirava zero. “Na boca, tem sempre mais gente vendendo crack do que outras drogas. Parece fila do McDonald’s”, diz João, 25 anos, estudante de engenharia, filho e neto de médicos, que há um ano e dois meses tenta largar o vício na Greenwood e paga 500 reais pela diária.
A degradação acontece em uma velocidade incontrolável. Em menos de um mês, o fumante deixa de ser um ingênuo calouro em busca de novas sensações para se tornar usuário contumaz, viciado e entregue aos efeitos devastadores da droga. Ao contrário do que ocorre com a maconha, com o álcool e mesmo com a cocaína, que, apesar do perigo extremo, demoram mais para provocar danos degradantes, o crack causa prejuízos em curtíssimo espaço de tempo.
Segundo estudo do psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo, 30% dos dependentes de crack morrem antes de completar cinco anos de uso. “É um índice maior que o da leucemia e de outras doenças graves”, alerta. As causas dos óbitos vão além dos malefícios da droga no corpo — para conseguir saciar o vício, o usuário perde a noção do perigo e envolve-se constantemente em situações de alto risco. “Mais da metade dessas mortes foi decorrente de confrontos com traficantes ou policiais.” A destemida busca pelo crack é acarretada pelo seu elevado e incomparável potencial viciante. “É raríssimo encontrar alguém que o use apenas social e esporadicamente”, diz a psicóloga Fátima Padin, especialista em dependência química e proprietária da Clínica Alamedas, nos Jardins. “Quem prova uma vez fatalmente vai querer usar de novo e de novo e de novo.” A sujeição cega deve-se ao imediatismo de seu efeito.

Números que assustam
Morte anunciada: Um em cada três usuários de crack morre nos primeiros cinco anos de consumo da droga, segundo estudo da Unifesp. Veja as principais causas da morte.

42% foi o crescimento da procura de dependentes de crack pelo Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) entre 2005 e 2009
42% foi o crescimento da procura de dependentes de crack pelo Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) entre 2005 e 2009
Surgido nos Estados Unidos, o crack é, grosso modo, a cocaína em pedra, para ser fumada em cachimbos ou latas. Ao ser tragada, a droga atinge os pulmões e entra na corrente sanguínea instantaneamente, chegando ao cérebro em menos de dez segundos, ao contrário da cocaína em pó, que leva cerca de dez minutos para fazer o trajeto. “Ao tragar, o barato é instantâneo. E, para piorar, curto”, conta o psiquiatra Jorge César Gomes de Figueiredo, da clínica Vitória, em Embu, a 30 quilômetros da capital. “Você sempre quer mais e mais”, confirma Gabriel Mori, há pouco mais de três anos “limpo” — termo usado pelos viciados para definir os abstinentes. Morador do Butantã, Mori, 26 anos, empresário, é o retrato da realidade ainda pouco conhecida no universo do crack.
Antes relegada às classes mais baixas e simbolizada pela Cracolândia, no centro da cidade, a droga na última década ascendeu socialmente e passou a atingir em cheio as classes A e B. Dados da Secretaria Estadual de Saúde apontam que, entre 2006 e 2008, o número de usuários com renda familiar acima de 10 000 reais aumentou 139,5%. Não há estatísticas mais recentes, mas em clínicas especializadas na recuperação de dependentes químicos o sinal vermelho se acendeu faz tempo.
Os “craqueiros” são maioria em vários centros de recuperação visitados pela reportagem. Na década passada, eles não chegavam a 10%, segundo os donos das clínicas. “Quem se vicia no crack praticamente larga as outras drogas”, diz o psicólogo Sérgio Duailibi, diretor administrativo da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas (Uniad). “Para diminuir a fissura, vez ou outra, o usuário mistura o crack com a maconha ou com a bebida”, afirma Solange Nappo, pesquisadora e professora de psicobiologia da Unifesp. A “tática” de misturar o crack à maconha (chamada pitilho, ou piti) pode, por outro lado, fazer com que ele subestime o poder da droga.
Nas páginas policiais, o crack também ganhou espaço na última década. De 2006 a 2009, a apreensão da droga pelo Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) subiu de 450 para 1 123 quilos, um aumento de 150%. Porcentualmente em relação às demais drogas, o número de apreensões ainda é baixo (2,6%), mas é preciso colocar na conta boa parte da cocaína apreendida, já que o crack é produzido a partir da pasta-base da coca ou da cocaína em pó. Os traficantes, como bons comerciantes, perceberam que vale a pena diversificar o leque de produtos. Hoje, o crack está presente em qualquer ponto de venda de droga.

Números que assustam
O governo federal promete investir 90 milhões de reais para dobrar de 2 500 para 5 000 o número de leitos para dependentes químicos em hospitais do SUS.
10 reais é o preço de uma pedra de aproximadamente 5 gramas, suficiente para três tragadas.

600 000 pessoas fumam crack hoje no Brasil, segundo estimativa do Ministério da Saúde. Em 2005, esse número era de 380 000. O aumento foi de 58%
600 000 pessoas fumam crack hoje no Brasil, segundo estimativa do Ministério da Saúde. Em 2005, esse número era de 380 000. O aumento foi de 58%
Enquanto o diretor do Denarc, o delegado Marco Antonio de Paula Santos, afirma que a maconha sumiu do mercado por causa das seguidas apreensões, Solange acredita que se trata de uma estratégia do tráfico para empurrar o crack goela abaixo dos usuários. “O fato é que o tráfico está nas mãos do crime organizado”, diz Santos. “E eles perceberam que o crack, mesmo barato, pode ser mais rentável que as outras drogas.” Segundo o delegado, o combate ao pequeno traficante não resolve a questão. “É um tráfico pulverizado. Podemos ir a vários pontos de venda de crack e prender vinte, trinta pessoas. Além de a maioria não ficar presa, outras vinte, trinta pessoas vão estar ali no lugar delas no dia seguinte.”
O crescimento desenfreado do crack motivou — com um atraso de pelo menos uma década — um plano de tratamento e combate à droga lançado pelo governo federal no último dia 20. Na verdade, trata-se de uma reedição do programa anunciado em junho do ano passado, que não saiu do papel por “falta de dinheiro”, segundo palavras da secretária executiva do Ministério da Saúde, Márcia Bassit Lameiro. A promessa desta vez é investir 410 milhões de reais, sendo 90 milhões para dobrar de 2 500 para 5 000 o número de leitos para dependentes químicos no Sistema Único de Saúde (SUS). O programa também inclui, entre outras ações, a capacitação de professores da rede pública sobre o tema, a construção de abrigos e de centros para orientar usuários, que neles poderão descansar, tomar banho e se alimentar, e a criação de consultórios de rua. São medidas necessárias, mas insuficientes para controlar uma epidemia que começou na cidade de São Paulo na década de 90 e se espalhou por todos os estados brasileiros.
Conforme mostram os relatos, os dependentes podem levar anos para superar o vício e estão sujeitos a recaídas frequentes, mesmo depois de muito tempo sem usar a droga. Ainda não há tratamentos nem remédios que impeçam que o usuário volte a fumar as pedras. “Tem de haver uma vigilância diária até o fim da vida”, afirmam, em coro, os participantes de grupos de mútua ajuda, como os Narcóticos Anônimos. Eles auxiliam os usuários a se manter firmes na decisão de ficar longe das drogas. “A recuperação tem de ser de dentro para fora e exige uma força de vontade gigante”, explica o ex-dependente João Blota, de 34 anos. Depois de consumir crack por cinco anos, ele está limpo há treze e hoje é dono de uma agência de publicidade. “Sou prova viva de que é possível sair dessa.”

Efeitos no organismo
Boca: Porta de entrada da droga, sofre com queimaduras, inflamações na gengiva, cáries e perda de dentes.
Sistema digestivo: Como o organismo passa a trabalhar em função da droga, o dependente não tem vontade de comer e emagrece muito rápido. Por isso, fica desnutrido. Úlceras gástricas e diarreias também são frequentes.
Sistema reprodutor: Quem usa crack fica mais exposto a comportamentos sexuais de risco. Pesquisa da Unicamp com 252 usuários de cocaína e crack mostrou que 20% tinham o vírus HIV e 67% dos entrevistados nunca usaram preservativo nas relações sexuais. O dependente pode perder o interesse por sexo ou apresentar impotência.
Dedos: De tanto acender o cachimbo de crack, muitos queimam os dedos a ponto de deformá-los.
Cérebro: O uso crônico leva a danos cerebrais. A droga compromete a atenção, a fluência verbal, a memória e as capacidades de aprendizagem, concentração e planejamento. Paranoias também são comuns. Se ouve um barulho, o dependente pode pensar tratar-se de um helicóptero que o está perseguindo, por exemplo. Surtos psicóticos, perda de valores éticos e agressividade são outros comportamentos observados.
Pulmões: São os primeiros órgãos expostos às substâncias do crack. Tosse por irritação dos brônquios e chiados no peito podem aparecer dentro de minutos ou após várias horas de uso. Há casos de edema pulmonar.
Sistema cardiovascular: São comuns sintomas de taquicardia, aumento da pressão arterial e até arritmias, especialmente quando a droga é combinada com álcool. Isso pode levar a um acidente vascular cerebral (AVC) ou a um infarto agudo do miocárdio, mesmo em pessoas jovens.
Crack: "Tentei matar meu irmão"

Angelo Pugliese, 29 anos, vendedor:
Angelo Pugliese, 29 anos, vendedor: "tentei matar o meu irmão"
Fernando Moraes
“Depois de uma década usando cocaína, conheci o crack em 2007, quando tinha 27 anos. Não sentia vontade de fazer mais nada a não ser usar a droga. Fumava inclusive no trabalho. Nessa época, eu morava em Itu (SP) e era técnico em uma fábrica de sucos. Consumia trinta pedras num dia. Gastava de 5 a 10 reais em cada uma. Cheguei a estourar o cheque especial em cerca de 7 000 reais.
Como faltava muito ao emprego, fui demitido e minha família me internou numa clínica. Fugi depois de três dias. Quando voltei para casa, meu irmão e minha mãe me expulsaram (o pai deixou a família quando ele tinha 11 anos). Fui morar com um primo em Guarulhos. Não demorei muito para frequentar a Cracolândia. Ali, vivia perambulando pela rua e conseguia dinheiro como flanelinha. O mais importante era fumar e acalmar a fissura.
Depois de dois meses em São Paulo, voltei para minha casa em Itu. Peguei um cartão de crédito e comprei umas coisas nas Casas Bahia para trocar por droga. Nesse dia de paranoia, tomei álcool com energético misturado a várias drogas. Com raiva do meu irmão, que tinha me expulsado de casa, tentei matá-lo. Fui levado para a delegacia e depois me senti muito envergonhado. Decidi então me internar. Fiquei 52 dias e acabei de deixar a clínica (ele saiu no último dia 18).
Estou limpo há dois meses e arrumei um emprego como vendedor numa loja de motos. Por saber que tenho uma doença progressiva, incurável e fatal, frequento reuniões de grupos de dependentes anônimos. Não me considero recuperado, mas sim em recuperação. O mais importante é que meu irmão me perdoou.”
Angelo Pugliese, 29 anos, vendedor.

Crack: "Abandonei minhas duas filhas"

Henrique Skujis e Maria Paola de Salvo | 02/06/2010
F.O., 29 anos, separada, auxiliar administrativa:
F.O., 29 anos, separada, auxiliar administrativa: "abandonei minhas duas filhas"

Crack: "Em três tragos, estava viciado"

Henrique Skujis e Maria Paola de Salvo | 02/06/2010

“Sou de um tempo em que usar maconha era sinal de contestação. Sempre tive uma vida boa. Filho de sociólogos, morei seis anos nos Estados Unidos. Saía do Colégio Equipe, onde estudava, e ia fumar um baseado com os amigos. Não demorou muito e experimentei cocaína, aos 17 anos.
Aos 20, virei comissário de bordo da Varig e passei a fazer voos internacionais. Cheirava carreirinhas de pó até voando, mas ninguém percebia. Era possível entrar em todos os países com a droga. Depois da quebra da Varig, fiquei sem emprego. Passei a trabalhar como tradutor e, em 2005, comprei um táxi. Circulava de madrugada e levava prostitutas para comprar droga. Um dia, uma delas me ofereceu crack. Bastaram três tragos para eu me viciar. Ia para o motel, me trancava no quarto com minha namorada e consumia umas catorze pedras.
Gostava de fumar uma enorme, chamada “juremona”, que custa 100 reais. Cheguei a gastar 500 reais num único dia. Vendi meu paraglider, que era a coisa que mais amava. Fui perseguido duas vezes por policiais e, numa delas, acabei na delegacia. Por falta de concentração, não conseguia mais traduzir textos nem tinha vontade de guiar. Internei-me pela primeira vez em novembro do ano passado. Fiquei limpo por uns quatro meses. Recaí e voltei a me internar em abril.”
A.D., 44 anos, dois filhos, tradutor, ex-comissário de bordo da Varig
Fernando Moraes

Crack: "Já passei por trinta internações"

Henrique Skujis e Maria Paola de Salvo | 02/06/2010
F.A.L., 37 anos, pecuarista, separado, três filhos, internado no Instituto Bairral, uma clínica de Itapira
F.A.L., 37 anos, pecuarista, separado, três filhos, internado no Instituto Bairral, uma clínica de Itapira
Fernando Moraes

“Usava cocaína desde os 17 anos. Um dia, aos 27, fui comprar pó, não tinha e me apresentaram ao crack. Foi uma substituição automática. Sempre fumei sozinho, trancado em hotéis e motéis. Uma vez, sumi e cheguei a ficar dois meses dentro de um deles. Depois que passava o efeito da droga, vinham a paranoia e a mania de perseguição. Eu via até helicóptero descendo pelas paredes para me pegar.
Fui internado várias vezes, a maioria involuntariamente, o que é péssimo. O crack é o barato que sai caro. Já gastei 300, 400 reais por dia para comprar 30 gramas. Vendi som de carro, televisão de casa, objetos pessoais, roupa. Quando você volta para a sociedade, percebe que parou no tempo, e isso é muito frustrante.
Como tenho muita dificuldade de lidar com isso, acabo recaindo. Cheguei a ficar três anos limpo, mas voltei a beber e aí adeus. Com o crack você não tem opção: ou vai para a clínica ou morre. No último dia 22 de abril, internei-me pela trigésima vez.”
F.A.L., 37 anos, pecuarista, separado, três filhos, internado no Instituto Bairral, uma clínica de Itapira

“Deixei de escovar os dentes e de tomar banho. Vivia apenas para fumar crack. Não conseguia nem cuidar das minhas filhas. Mandei a de 15 anos estudar no Canadá e a de 12 morar com o pai, em Porto Alegre.
Troquei tudo o que tinha dentro de casa pela droga: televisão, eletrodomésticos, roupas... Fumava quinze pedras por dia. Minha família, desesperada, não sabia o que fazer. Venderam meu apartamento e meu carro. Quando consegui dar um tempo, voltei a trabalhar. Mas, ao receber o primeiro salário, troquei tudo por crack. Recaí de novo. É difícil controlar a fissura.”
F.O., 29 anos, separada, auxiliar administrativa

Crack: "De cada dez pessoas que provam, nove viram dependentes"

Henrique Skujis e Maria Paola de Salvo | 02/06/2010
Jorge César Gomes de Figueiredo, psiquiatra especialista em dependência química
Jorge César Gomes de Figueiredo, psiquiatra especialista em dependência química
Fernando Moraes

“Antes, aparecia só um ou outro dependente de crack. Hoje, dos sete pacientes internados na minha clínica, que tem mensalidade de 13 500 reais, três são viciados nessa droga. Tem advogado, filósofo, professor... O poder viciante é impressionante. De cada dez pessoas que provam bebida alcoólica, uma vira dependente. Com o crack, são nove.

Quem fuma não precisa de mais nada. Encontra tudo na droga. Tem a sensação de que é forte e invulnerável. Rapidinho, o prazer da droga desaparece, mas a lembrança eufórica faz com que a pessoa não consiga largar. Ela fica agressiva, perde a autocrítica. Se precisar pisar no pescoço da mãe para conseguir a droga, vai pisar. Quem fuma crack vira um monstro.”
Jorge César Gomes de Figueiredo, psiquiatra especialista em dependência química