terça-feira, 30 de agosto de 2011

Sócrates recebeu tratamento de ponta para recuperar o fígado

DÉBORA MISMETTI
EDITORA-ASSISTENTE DE SAÚDE - FSP

O procedimento a que o ex-jogador Sócrates foi submetido para tratar a hipertensão portal já existe há dez anos no país mas ainda é considerado um tratamento de ponta, segundo Raymundo Paraná, presidente de Sociedade Brasileira de Hepatologia.
Os médicos tiveram que colocar um stent (uma "mola") para desviar o sangue que entra no fígado pela veia porta para a veia supra-hepática.
O procedimento foi necessário porque o ex-jogador estava sofrendo de hipertensão portal.

Jorge Araújo/Folhapress
O ex-jogador Sócrates em foto quando estava internado; médicos colocarma um stent para desviar sangue no fígado
O ex-jogador Sócrates em foto quando estava internado; médicos colocarma um stent para desviar sangue no fígado
Isso acontece quando o sangue que entra no fígado pela veia porta tem seu caminho impedido pela formação de tecido fibroso no órgão.
Esse tecido de cicatriz surge quando o fígado sofre agressões por muito tempo, como o consumo de álcool de longo prazo, como foi o caso de Sócrates, ou por doenças como a hepatite.
"Quando a pessoa tem uma cirrose hepática, a fibrose bloqueia a passagem do sangue. Mas a veia continua trazendo o sangue. Isso cria a hipertensão portal. É como um canal de irrigação bloqueado", diz Paraná.
Por causa da pressão, o sangue é desviado pela veia gástrica até vasos do esôfago e do estômago.
Editoria de arte/folhapress
Como não estão preparados para esse fluxo, os vasos formam varizes e podem se romper, causando uma hemorragia --foi o que ocorreu com Sócrates.
Paraná explica que o sangramento pode ser controlado com remédio ou com um procedimento por endoscopia.
Quando isso não dá resultado, os médicos abrem um caminho pelo fígado para dar vazão ao sangue que vem da veia porta diretamente para a supra-hepática, que leva o sangue ao coração.
Isso é feito com um stent, inserido pela jugular (no pescoço) até o fígado.
"É um método recente, caro e muito pouco usado. Há poucos centros de hepatologia e poucos especialistas que fazem isso", afirma Paraná.
A decisão sobre um possível transplante de fígado após o procedimento depende do grau de comprometimento do órgão. "É possível reverter a cirrose se a agressão ao fígado parar. Se ele parou de beber, é possível."

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Felipe Camargo: Não sou ex-drogado. Sou vencedor.


Após 17 anos, o ator volta a protagonizar uma minissérie da Rede Globo e conta como se livrou das drogas

Renata Cabral
 
Felipe Camargo é um sobrevivente a quem a vida oferece a chance de se reinventar sem precisar apagar o passado. O ator carioca que mergulhou nas drogas na década de 1990 tem motivos para comemorar: está há 13 anos livre da dependência e voltará a protagonizar uma produção da Rede Globo, a minissérie "Som e Fúria", após quase duas décadas longe dos destaques da emissora. Esse trabalho é a sua oportunidade de reconquistar a visibilidade depois desse tempo de ostracismo no qual fez papéis menores - e, mesmo quando estrelou novelas, não teve repercussão. Quem o coloca no time dos grandes atores é o cineasta Fernando Meirelles, diretor de "Som e Fúria". Na terça-feira 7 ele voltará à emissora que o lançou ao sucesso em 1982, na minissérie "Anos Dourados".
Agora ele interpretará o personagem Dante, um diretor teatral inspirado em Hamlet, do dramaturgo inglês William Shakespeare. Aos 48 anos, Camargo continua com um porte elegante, mas traz no rosto as marcas do tempo. Atualmente, o seu único vício é fumar cigarrilha de baunilha. Parece tranquilo e se orgulha de criar o filho, Gabriel, 16 anos, que mora com ele na Barra da Tijuca. A mãe do adolescente é a atriz Vera Fischer, com quem o ator viveu um casamento permeado de agressões, escândalos e processos que alimentaram a mídia. Mas tudo faz parte do passado. Camargo carrega um chaveiro com a frase "Só por hoje", lema do grupo Narcóticos Anônimos (NA) que ele frequenta. "O NA me salvou", afirma Camargo. "Sei o valor da minha recuperação e isso ninguém tira de mim."
Istoé - Acha que os escândalos em que se envolveu nos anos 1990 (a dependência de drogas e as brigas públicas com Vera Fischer) atrapalharam sua vida profissional?
Felipe Camargo -
Houve escândalos na vida de diversas pessoas e nem todas foram prejudicadas profissionalmente. Se fui preterido por causa disso, foi injusto. A Vera nunca foi afastada da Rede Globo. Talvez a justiça esteja sendo feita agora, por eu estar voltando à tevê de uma forma bacana. Mas eu não quis muito saber disso. Aprendi que não dá para ficar reclamando demais. Se as coisas não estão acontecendo da maneira como você quer, às vezes, é preciso se adequar.

Istoé - Acha que os escândalos em que se envolveu nos anos 1990 (a dependência de drogas e as brigas públicas com Vera Fischer) atrapalharam sua vida profissional?
Felipe Camargo -
Houve escândalos na vida de diversas pessoas e nem todas foram prejudicadas profissionalmente. Se fui preterido por causa disso, foi injusto. A Vera nunca foi afastada da Rede Globo. Talvez a justiça esteja sendo feita agora, por eu estar voltando à tevê de uma forma bacana. Mas eu não quis muito saber disso. Aprendi que não dá para ficar reclamando demais. Se as coisas não estão acontecendo da maneira como você quer, às vezes, é preciso se adequar.

Istoé - A que o sr. credita os 17 anos de afastamento da Rede Globo, a emissora que o tornou famoso?
Felipe Camargo -
Isso não foi por falta de vontade minha. Até pedi, algumas vezes, chances e oportunidades lá. Então, não posso especular os motivos. Tenho o maior orgulho de ser ator há 27 anos e de ter sempre vivido de minha profissão. E, ao mesmo tempo, esse período que fiquei afastado foi de um crescimento enorme. Fiz cinema, protagonizei em outras emissoras, trabalhei bastante no teatro, produzi e dirigi espetáculos. Eu me aperfeiçoei. Para muita gente, se não se está na Rede Globo, está-se no ostracismo.

Istoé - Sua época de auge na televisão coincidiu com a entrada no mundo das drogas?
Felipe Camargo -
Eu vim de uma geração em que usar droga era legal, diferentemente da geração de meu filho, Gabriel, de 16 anos. A droga existe desde o início dos tempos, mas especialmente nos anos 1960, por conta dos grandes ídolos da música, que mais ou menos determinam o comportamento, ela se espalhou no mundo inteiro. E eu tinha só 14 anos. Ou você era um careta, bobão, ou era o cara. Eu e mais uma multidão, em todo o mundo, fizemos a segunda opção.

Istoé - Sofreu preconceito?
Felipe Camargo -
Existe um julgamento muito severo com quem usa drogas. Eu era um cara jovem que circulava, frequentava a noite como todo mundo. Só que, na época em que era o primeiro ator da minha faixa etária na Rede Globo, o sucesso incomodava e o assédio foi muito maior. Eu não merecia essa carga toda em cima de mim. O que acho realmente importante é que vivi isso tudo e parei.

Istoé - Há quanto tempo?
Felipe Camargo -
Estou há 13 anos em recuperação. São 13 anos, não é da noite para o dia. Demandou muito esforço, autoconhecimento, boa vontade, humildade. Eu sei o valor disso e ninguém me tira esse valor. As pessoas gostam do rótulo de ex-drogado. Eu não sou mais viciado, sou um vencedor. Sei quanto é difícil porque vejo que a grande maioria das pessoas que se envolvem dessa forma com drogas não consegue voltar.

Istoé - A chegada de Gabriel tem a ver com essa volta por cima?
Felipe Camargo -
Sem dúvida. O filho dá outra dimensão à vida, um senso de responsabilidade muito grande. É aquela história da máscara de oxigênio que cai do teto do avião. Você bota primeiro em você para, depois, poder botar no seu filho. Ou seja: temos de cuidar de nós mesmos para poder cuidar de nossos filhos. Eu crio meu filho há 12 anos. Acompanho o crescimento dele. Hoje, me incomoda a forma como a bebida é tratada. Parece um sorvetinho. Álcool é uma droga.

Istoé - O sr. e seu filho conversam sobre isso?
Felipe Camargo -
Sobre tudo o que vai aparecendo. Ele não fuma e não bebe. Também não sei se ele me conta tudo. Mas esse é o lado positivo de minha geração: porque experimentamos praticamente tudo, vivemos bastante e temos propriedade para falar ou detectar algo de estranho no comportamento de nossos filhos. Não sou um exemplo de pai, ele vê minhas imperfeições. Acho que ele é muito melhor do que eu. Mas, de alguma maneira, ele vê um exemplo em mim. De alguém que lutou e venceu. Os filhos aprendem primeiro pelo que veem, depois pelo que escutam.

Istoé - Ainda frequenta o Narcóticos Anônimos?
Felipe Camargo -
Frequento porque gosto, salvou minha vida. Visitei o grupo de Los Angeles, nos Estados Unidos, quando estive lá. É importante ir às reuniões para ver a dimensão do problema. Não sou um caso isolado.
Istoé - Quando notou que as drogas passaram de curtição a dependência?
Felipe Camargo -
A partir do momento em que vi que não estava me fazendo bem e não conseguia parar. O primeiro passo é admitir que se está perdendo o controle.
Istoé - É a favor da descriminalização das drogas?
Felipe Camargo -
Sim, mas acho que teria de partir de países mais avançados, porque liberando apenas no Brasil não sabemos quais poderiam ser as consequências. O País poderia virar uma rota de tráfico para a Colômbia, por exemplo. Por outro lado, com a descriminalização, a polícia poderia parar de se preocupar com os usuários e perseguir mesmo os traficantes.

Istoé - Uma das consequências do tráfico de drogas é a violência nas grandes cidades. Já foi vítima da criminalidade no Rio?
Felipe Camargo -
Tenho sorte. Fui assaltado apenas uma vez, em 1983. Acho que a salvação do Rio é a especulação imobiliária. As encostas são os lugares mais caros para se viver em qualquer lugar do mundo. Quem vive em favelas deveria ser bem indenizado pelo terreno, para mudar para outro lugar. Claro que a maioria das pessoas que mora lá é honesta. Mas é um esconderijo para o mundo do crime e das drogas. Na verdade, teria de haver uma mudança geral, e penso numa coisa que não seja violenta. Acho que tem de ser bem estudado. Para mim, o mais revoltante no Brasil é a imunidade parlamentar. A reforma política é a mais necessária. Eles levam o seu dinheiro e a sua fé, roubam o seu dinheiro e traem a sua fé. E lá ainda é o celeiro dos grandes traficantes, porque sabemos que as grandes conexões passam pelo poder.

Istoé - Qual era o motivo das brigas entre o sr. e Vera Fischer?
Felipe Camargo -
Por que os casais brigam? Porque são duas pessoas que estão juntas, são dois mundos diferentes que têm de se adequar. A Vera é uma pessoa de quem gostei muito, eu a quero bem, é mãe do meu filho. Buscamos ser felizes, ela com a vida dela, eu com a minha vida. Estamos em acordo com a guarda de Gabriel há três ou quatro anos.

Istoé - Como recebeu o convite para participar de "Som e Fúria"?
Felipe Camargo -
O meu personagem, o Dante, é, sem dúvida alguma, o mais rico que já fiz. Na minissérie estabeleceram um paralelo entre ele e Hamlet, de William Shakespeare. Interpreto um diretor atormentado, que some durante uma encenação, justamente de Hamlet, e se isola por sete anos. Tenho uma gratidão enorme por Fernando Meirelles pelo fato de ele ter acreditado em mim e me dado um personagem de ponta. Até perguntei: "Fernando, eu fui meio o bagaço da laranja?" E ele me disse que não, que eu havia sido a primeira pessoa que ele pensou quando pegou a série. Ele tinha visto o filme "Jogo Subterrâneo", de 2003, e a série "Filhos do Carnaval", que fiz no canal a cabo HBO.

Istoé - O sr. tinha outro projeto?
Felipe Camargo -
Eu estava praticamente havia um ano sem trabalhar. Como as propostas não vinham, comecei a sentir angústia. Eu falo inglês, havia passado dois meses nos Estados Unidos estudando a língua, e pensei em tentar alguma coisa lá fora porque não estava acontecendo nada aqui.

Istoé - Dificuldades financeiras?
Felipe Camargo -
Não. Iria tentar carreira no Exterior por frustração mesmo. Tanto que fiz a viagem E fiquei dois meses. Eu aprendi a juntar dinheiro. Antigamente, gastava tudo.
Istoé - O sr. assinou um contrato com a Rede Globo?
Felipe Camargo -
Sim, de dois anos. Vou fazer a próxima novela das 19h, "Bom Dia, Frankenstein", e, se o ibope de "Som e Fúria" corresponder às expectativas, vamos fazer a segunda temporada da série.
Istoé - Sentiu falta da fama no tempo em que esteve afastado?
Felipe Camargo -
A fama é um dos aspectos que acho mais chatos na profissão. Detesto o estrelismo. Se eu pudesse ser duas pessoas, uma para sair na rua e outra para viver a minha vida, eu seria. Duvido que haja um ator bom que goste da invasão de privacidade.
Istoé - Aprendeu a conviver com a fama no início da carreira?
Felipe Camargo -
Não sabia lidar. Do dia para a noite, fiquei conhecido de uma forma muito forte. Hoje tenho mais experiência e o público que me aborda não é mais constituído de adolescentes histéricas.
Istoé - Na época, se deslumbrou?

Jardel "A cocaína destruiu o meu lar"

Jardel

"A cocaína destruiu o meu lar"
Um dos maiores artilheiros da história do futebol europeu, o brasileiro Jardel conta como superou o vício em álcool e drogas

Rodrigo Cardoso
 
Este ano, o jornal A Bola, tradicional diário esportivo de Portugal, quis saber da imprensa especializada e dos leitores quem foi o melhor estrangeiro de todos os tempos a pisar nos campos lusos. O vencedor foi o centroavante Mário Jardel Almeida Ribeiro, o brasileiro Jardel, conhecido lá como Super Mário. Não pela estatura (1,88 metro), mas por ter anotado 186 gols em 186 jogos naquele país. Jardel despontou para o futebol no Vasco da Gama, conquistou títulos no Grêmio e fez fama em Portugal, no Porto e no Sporting, principalmente. Lá, ganhou cinco troféus Bola de Prata de maior artilheiro do campeonato português e duas Chuteiras de Ouro (maior artilheiro da Europa). Era um fenômeno dentro da área, especialista em gols de cabeça. A Copa do Mundo parecia ser um caminho natural, mas ele foi preterido por Felipão, em 2002, quando o Brasil conquistou o penta. Ele, que na época já não conseguia vencer a dependência de álcool e cocaína, afundou de vez.
Terminou o casamento, se afastou dos filhos e passava noites em claro cercado de mulheres, bebida e drogas. Hoje, aos 35 anos, deitado em uma rede na sua casa em Fortaleza, Jardel contou à ISTOÉ por que se considera recuperado do vício há cerca de um ano e meio. Como Ronaldo, que acaba de conquistar um título no retorno ao futebol brasileiro, procura um clube que lhe dê a chance de se superar dentro de campo - como fez na vida pessoal.
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"Eu sou tipo bananeira, parado dentro da área. Dentro dela eu sou melhor do que o Ronaldo. Não tenho dúvida nenhuma, não!"

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"Fiquei péssimo, péssimo por não ter sido convocado pelo Felipão para a Copa do Mundo de 2002. Isso contribuiu (para o vício em drogas)"

O sobrevivente

Luciano dos Santos passou de dependente e traficante a um exemplo de esperança de que é possível sair das drogas e do narcotráfico

Celina Côrtes - ISTOÉ
 Istoé - Como começou seu envolvimento com drogas?

Luciano Maurício Silva dos Santos -
Aos nove anos. Somos seis irmãos. O mais velho já usava e vendia maconha. Nessa idade tinha experimentado cigarro, quando aprendi a tragar. Pegava as guimbas que encontrava e acendia. Um dia me vi fumando maconha e achei que era cigarro. Engasguei, comecei a tossir, passei mal, vomitei, mas fiquei rindo muito. Achei bem legal. Os outros mais velhos fumavam maconha e não passavam mal. Nessa época, meus pais estavam se separando. Eu era o caçula e muitas vezes dormia entre os dois. Uma noite acordei e meu pai não estava mais ali. Foi aí que a droga entrou de forma profunda na minha vida.

Istoé - Em que momento você percebeu que estava viciado?
Luciano -
Experimentei cocaína aos 15 anos. Antes tinha muito medo, via as pessoas usarem e ficarem totalmente travadas. No primeiro dia cheirei muito. Passei mal e mesmo assim não queria parar de cheirar. Comecei a ficar deprimido, o dia estava passando e eu cheirando. A droga estava acabando e a depressão já estava forte. Jurei que ia parar. Fiquei dois dias sem usar a droga. Quando o arrependimento e a ressaca passaram, tentei não usá-la, mas não consegui. Me senti um derrotado. Depois disso, emburaquei. Para que lutar contra uma coisa que não conseguia vencer?

Istoé - De que forma você se envolveu com o tráfico de drogas?
Luciano -
Tinha um pai que me mandava para a escola com motorista particular, mas depois que ele se separou da minha mãe muitas vezes passei fome. Constatei que meu irmão conseguia manter seu padrão vendendo drogas. Fui enviado para uma escola pública e matava muita aula. Aos 15 anos parei de estudar. Comecei a roubar droga de meu irmão, sem que ele soubesse, e depois vendia. Gostei daquilo e busquei fontes para poder vender.

Istoé - Você não tinha medo de morrer?
Luciano -
Vi meu pai dando coças no meu irmão, que foi preso muitas vezes. Mas o dependente, quando usa drogas e trafica, não tem medo da morte. O traficante tem um poder na mão, que é a droga. O que eu mais gostava quando vendia era de ver aqueles que me desprezavam virem atrás de mim. Não tinha medo de nada nem amava ninguém. Me tornei uma pessoa absolutamente fria. Gostava quando os outros ficavam ao meu redor por causa da droga. Era uma sensação grande de poder.

Istoé - Você acha que a maconha pode levar a outras drogas?
Luciano -
No meu caso, percebi que a cocaína me dava muito mais força do que a maconha. Só fumava para aliviar a tensão quando estava muito travado. Na maioria das vezes, o usuário de maconha passa para a cocaína e não quer saber de outra coisa.

Istoé - Você foi preso mais de uma vez. Como conseguiu sair?
Luciano -
Fui preso quatro vezes. Por incrível que pareça, em nenhuma delas me pegaram vendendo droga. Era preso em blitz como suspeito, ou por desacato, ao reagir à prisão. Quando vendia droga, ela ficava sempre com outra pessoa, longe de mim. Já tinha convivido com as prisões de meu irmão e sabia como as coisas aconteciam. Minha primeira prisão, aos 14 anos, foi injusta e marcou muito minha vida. Roubaram um canário de briga do vizinho e disseram que fui eu. Me deram umas palmatórias e isso me marcou. Conheci bandidos e assassinos na cadeia. A partir daí, comecei a pensar: agora vou dar motivo para ser preso.

Istoé - Você sofreu muito preconceito por ser negro?
Luciano -
Muito. Eles tratam usuário de droga branco diferentemente do negro. Estava no carro uma vez e era o único negro. Paramos em uma batida policial. Deram uma geral e pegaram quatro baseados. Ninguém falou nada com os outros. Só eu fui preso, e a droga nem estava comigo. Antes de vender, eu já tinha fama de traficante, só porque era negro.

Istoé - O que era mais difícil, o vício ou o tráfico?
Luciano -
O vício. Foi ele que me levou ao tráfico. Conheci poucos traficantes que não eram viciados. O vício me fazia ser frio, calculista, ambicioso. Meu sonho era ser o maior traficante do Brasil. A mística de ver os Escadinhas da vida era um incentivo. (Escadinha é um ex-traficante do Rio, fundador do Comando Vermelho, que cumpre pena em regime semi-aberto)

Istoé - Qual foi o momento mais difícil que você passou durante esse período?
Luciano -
Aos 19 anos fui dispensado do Exército. Queria ser pára-quedista, tinha vontade de parar com as drogas e ter um futuro. Me perguntaram o que eu fazia e eu contei que era usuário de drogas, mas queria parar. Me mandaram para a Polícia do Exército. Não sei se fui dispensado por isso ou por excesso de contingente. Me arrependi de ter falado a verdade. Depois fui para um apartamento em Vitória e fiquei cheirando cocaína com minha turma. Começamos a disputar quem ia tomar conta do ponto-de-venda fazendo roleta-russa. Quando chegou minha vez, já tinha cheirado e bebido muito uísque. Então fui lá na minha infância. Há muito não me lembrava de algo afetivo. Pensei que, por pior que fosse minha vida, ela não poderia acabar ali. Foi o único momento em que ouvi Deus colocar minha vida em minhas mãos. Não era nem cristão. Empurrei a arma para a frente e disse: “Vocês vão me ajudar, quero mudar de vida.” “Broxou”, eles caçoaram. Levantei, peguei um ônibus e fui para a casa da minha mãe, em Cachoeiro do Itapemirim.

Istoé - Em que momento você tomou a firme decisão de mudar?
Luciano -
Quando voltei para Cachoeiro, ia na igreja e dizia para mim mesmo que não ia mais usar drogas. Naquela época, não havia tratamentos como hoje. Uma vez estava na igreja e vi o pessoal na fila comungando. Resolvi entrar também, sem saber bem o que era aquilo. Falei uma coisa e acho que fui ouvido por Deus: “Se você está presente mesmo, muda a minha vida, porque não estou aguentando mais.” E minha vida mudou. Comecei a sentir vontade de ajudar as pessoas. Me separei dos amigos drogados. Olhava no espelho e pensava: acredito em mim, mereço ser feliz. Entrei para um grupo de mútua ajuda e passei a ter uma causa dentro de mim.

Istoé - Como começou seu trabalho de recuperar viciados?
Luciano -
Primeiro trabalhei em uma clínica de recuperação, onde recebi muita ajuda, aos 23 anos. Quando saí de lá, um ano depois, fui para um terraço e chamei três pessoas que também tinham saído da clínica para partilhar nossa experiência. Depois de um ano e meio, passamos para um salão maior, cedido pela Igreja. O grupo aumentou e a sala ficou pequena. Depois fomos para uma igreja, em Cachoeiro. Já eram 500 pessoas, mas o grupo havia perdido a característica de reunir só ex-usuários. Passei então a me reunir na sala de minha casa, aos 28 anos.  O grupo foi aumentando e meu sogro me cedeu uma sala, onde comecei a atender pessoas e a me especializar. Fiz cursos em vários lugares e países e participei de muitos congressos sobre dependência química. Sabia como parar, mas não sabia como transformar essa experiência em prática de cura. Onde aprendi mesmo foi aqui na Fundação Esperança. Tenho internos de 13 a 57 anos, viciados em maconha, cocaína e heroína.

Istoé - O que difere sua clínica no Espírito Santo das demais?
Luciano -
A clínica foi inaugurada em 1997, mas o trabalho começou em 1994. Fizemos os 12 passos da recaída, adaptados dos Alcoólicos e Narcóticos Anônimos. A dependência química é uma doença de sentimentos. Trabalhamos com a restauração e a reintegração da pessoa consigo mesma e em relação ao outro. Temos psicólogos, médicos, um professor de educação física especializado em desintoxicação. A partir do momento em que o dependente começa a curtir seu corpo, passa a acreditar que pode mudar. É obrigado então a fazer atividade física três vezes por semana. Também oferecemos um estudo da Bíblia, porque sem Deus não há saída. A estadia mínima é de 60 dias. Quando a pessoa ficar pronta, ela sai, não há limites preestabelecidos. Cada um tem um tempo, uma história. Estamos com 70% de recuperação.

Istoé - O que se passa no íntimo de um dependente químico?
Luciano -
O viciado perde o contato com o mundo porque perde a percepção. Passa a não compreender mais o que acontece a seu redor. Vive um isolamento emocional, de uma forma totalmente alienada. Só que não se dá conta disso e acha que está sendo rejeitado. Esse isolamento emocional é mantido pela dependência química, que dá uma falsa sensação de bem-estar.

Istoé - Você acha que as clínicas efetivamente recuperam os viciados ou há muitas caça-níqueis?
Luciano -
Há muitas que recuperam, existem ótimos profissionais. O Brasil está muito avançado em relação a outros países nessa área. Há uma quantidade de drogas muito grande na Europa, por exemplo, e eles não oferecem tratamentos de qualidade. Mas é verdade que aqui também existem clínicas que visam somente o lucro, embora não sejam muitas.

Istoé - Você foi o único brasileiro a participar do seminário em Portugal, em Setúbal, no mês de setembro. Quais os resultados desse encontro?
Luciano -
Eles conheceram minha clínica e me convidaram, mas pensei que era só uma participação. Só soube que ia dar um seminário uma semana antes. Tremi. Mas fui com a cara e a coragem e vi que eles não sabiam nada, embora já fizessem um trabalho de recuperação havia quatro anos. Firmamos um convênio e uma parceria: eles mandam profissionais para cá e nós mandamos os nossos para lá. Depois disso vem um de Setúbal se especializar. Me impressionou a oferta de drogas em Lisboa. Os traficantes andam de preto. A polícia vê e não faz nada.

Istoé - Hoje, os traficantes são um exército altamente armado. Como você vê o futuro próximo do tráfico? Eles continuarão cada vez mais poderosos?
Luciano -
Se a sociedade não se mobilizar para forçar o governo a elaborar uma lei que obrigue as escolas a conscientizar as crianças sobre os riscos das drogas desde pequenas, os traficantes vão ficar cada vez mais fortes. Se o tráfico aumenta, é porque tem gente comprando droga.

Istoé - Os viciados de hoje são parecidos com os do seu tempo? O que mudou?
Luciano -
Há uma diferença muito grande. Quando eu ainda usava, não havia tanta agressividade, era uma coisa mais pacífica. O mundo há dez anos era menos agressivo e o tráfico era diferente. Hoje, o cara cheira cocaína, pega uma pistola e vai para a rua. O que mudou foi o sistema, que ficou mais violento. Além disso, o vício está começando cada vez mais cedo. Mães me telefonam dizendo que o filho de 15 anos está quebrando tudo. Antigamente não era assim.

Istoé - Qual deve ser o comportamento de um pai ao descobrir que o filho é usuário de drogas ou viciado?
Luciano -
Deve chamá-lo para uma conversa e cativá-lo. Quando o dependente leva droga para casa, está pedindo ajuda. Precisa confiar nos pais, é uma situação que compromete seu comportamento, sua moral. A família tem de passar muita confiança para ele. E depois buscar ajuda profissional.

Istoé - Você já sentiu medo de ter uma recaída?
Luciano -
No início sim. Mas há dez anos que não sinto medo nenhum.
Aos nove anos de idade, Luciano Maurício Silva dos Santos começou a fumar maconha. Aos 15, se viciou em cocaína. Em seguida, passou a traficar drogas e esteve preso quatro vezes. Chegou a sonhar em ser o maior traficante do Brasil. Capixaba de 38 anos, Luciano ainda enfrentou preconceito com requintes de maldade por ser negro. Só encontrou forças para sair do poço quando chegou ao fundo. Buscou Deus, procurou a ajuda da mãe e começou a mudar de lado. Passou, aos poucos, a trabalhar na recuperação de dependentes químicos. Em 1994, deu início às atividades da Fundação Esperança, em Cachoeiro do
Itapemirim, no Espírito Santo, onde tem alcançado os melhores resultados. Entusiasmados com o índice de 70% de recuperação entre os internos de sua Fundação, portugueses de Setúbal o convidaram para dar palestras em um encontro de dependentes químicos. Luciano Maurício, único brasileiro a participar do encontro, saiu de lá com um convênio de intercâmbio firmado. Já enviou dois ex-internos para Portugal e volta a Setúbal para um seminário no mês que vem, quando traz outro grupo de portugueses para conhecer sua experiência vitoriosa em Cachoeiro. Sem arrogância, ele mudou a condição de ex-viciado e traficante para a de exportador de know-how na cura de dependentes. É radicalmente contra a liberação das drogas, mas não concorda com a prisão de ninguém pelo porte de um cigarro de maconha. “Essas pessoas têm de ser enviadas para centros de recuperação”, acredita. Também tem uma opinião formada a respeito de como barrar o avanço do tráfico: “As crianças precisam ser conscientizadas desde pequenas nas escolas sobre os riscos das drogas”. Luciano é casado há sete anos com Marcelle Falce Vianna, 33, também ex-viciada em maconha e cocaína. Quando se conheceram, ambos estavam separados dos primeiros casamentos e se sentiram atraídos pela experiência comum. Hoje, Marcelle o ajuda na Fundação e é mãe do único filho do casal, Rafael, de seis anos. “Minha vida agora é de amor”, exulta Maurício.

Crack atinge 70% dos internos de clínica pública em SP

AE
 
Mais de 70% dos pacientes em recuperação de dependência química ou alcoólica são usuários de crack, segundo estudo inédito realizado após o primeiro ano de funcionamento da primeira clínica pública para dependentes em álcool e drogas do Brasil, ligada à Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo. Metade dos dependentes utilizava mais de uma droga. O crack e o álcool aparecem como as principais. Levantamento realizado a partir do perfil dos pacientes mostra que os homens são responsáveis pela maior parte das internações, representando 82% dos pacientes, contra 18% de mulheres. A média de idade é de 35 anos, com 54% de solteiros, 21% de divorciados ou separados e 15% de casados. Inaugurada em março de 2009, a unidade é fruto de uma parceria entre a Secretaria de Estado da Saúde, o Grupo de Saúde Bandeirantes e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A clínica está localizada em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, e atendeu 233 pacientes ao longo dos últimos 12 meses. O modelo da unidade propõe o gerenciamento dos casos individualizados dentro de um programa de estratégias terapêuticas. A desintoxicação acontece fora do ambiente hospitalar para o qual essas pessoas costumam ser encaminhadas. Todos os pacientes atendidos vieram encaminhados por outras unidades de saúde. A clínica possui uma participação ativa de uma equipe multiprofissional. "Trata-se de um local com abordagem e tratamento diferenciados, modelo inédito na rede pública. Completamos um ano de sucesso e inovação, disponibilizando a população um aparelho extremamente eficiente e gratuito", afirma o secretário de Estado da Saúde, Luiz Roberto Barradas Barata. Durante os cerca de 40 dias de internação, o que varia conforme o caso, os pacientes têm uma grade de atividades diárias, com grupo de sentimentos e valores, de sexualidade, de dança de ritmos caribenhos e grupo específico para dependentes químicos.

Como afastar os jovens do mundo das drogas


 Crack – a droga mais perigosa da atualidade – invadiu a classe média. Uma pesquisa inédita mostra que as famílias não sabem onde obter ajuda. O que fazer para salvar os dependentes

Rodrigo Turrer e Humberto Maia Junior
Montagem Sattu sobre foto de Michael Edwards/Getty Images 
DEGRADAÇÃO
A montagem sobre a foto de um modelo simula os efeitos de alguns anos de uso de drogas
Foram quatro anos sob os efeitos de maconha, cocaína, ácido lisérgico, ecstasy, crack e até chá de fita cassete – uma “droga” a que os dependentes recorrem para suportar crises de abstinência. A triste viagem de Renan começou na casa da família, num bairro de classe média em São Paulo, e o levou ATÉ a favela Paraisópolis, a segunda maior da capital paulista.
“Lá eu estava onde eu queria, com a galera, e me drogava direto”, diz. Seus pais, Alda e Eli, haviam tentado impor limites para afastá-lo da dependência. Primeiro, conversaram. Depois, proibiram o filho de usar o carro, cortaram a mesada, estabeleceram horário para que ele chegasse em casa. Eles não eram novatos no assunto. Antes de Renan, o caçula da família Larizzatti, outros dois filhos do casal haviam passado por problemas semelhantes. “Com três filhos usando drogas, vi que era o fundo do poço”, diz Alda. O casal decidiu internar o mais novo, então com 22 anos. Antes de ser levado para uma clínica de desintoxicação, Renan fez uma ameaça aos pais: “Quando sair, eu mato vocês”. Três anos e dois meses depois do último contato com as drogas, Renan ajuda a família na casa lotérica que os sustenta. “Hoje, se eu matar meus pais, só se for de amor”, afirma.
Histórias como a dos Larizzattis ocorrem em muitas famílias. Às vezes, porém, o desfecho é trágico. Em 2009, a consultora aposentada Flávia Costa Hahn, de 60 anos, moradora de um bairro nobre de Porto Alegre, matou seu único filho, Tobias Hahn, de 24 anos. O rapaz consumia crack desde os 18 anos. Em abril do ano passado, depois de passar três noites em claro fumando crack, Tobias voltou para casa para pedir dinheiro. Flávia conta que discutiu com o filho, foi agredida e, para tentar se defender, pegou um revólver da coleção de armas do marido. A arma disparou e atingiu Tobias no pescoço. Ele morreu na hora. Em outro caso dramático, o músico Bruno Kligierman, de 26 anos, um jovem de classe média alta morador da Zona Sul do Rio de Janeiro, sufocou até a morte a amiga Bárbara Calazans, de 16. Ele havia consumido crack a noite toda. Seu pai, o poeta Luiz Fernando Prôa, o entregou à polícia.
Para dependentes de drogas, raramente há uma saída fácil. Internar o filho drogado, como fizeram os pais de Renan, é um recurso extremo, que até pouco tempo atrás era definido como exagerado. Para os Larizzattis, a decisão provou ser correta. Não só porque ele venceu a dependência. “Os pais de hoje têm medo de agir, estabelecer regras ou proibir”, afirma Luiz Fernando Cauduro, vice-presidente da ONG Amor Exigente, que ajuda famílias nessa situação. “Esse medo tem de ser rompido. Ele leva a família a não tomar uma atitude – e isso pode tornar o caso crônico.” 

Medidas exageradas podem levar o usuário de drogas a ficar mais tempo nesse universo

Mas o que fazer quando mesmo uma atitude mais dura da família não basta? Em 2005, a funcionária pública Sônia (nome fictício) descobriu que seu filho mais novo, então com 13 anos, era usuário de drogas. Sônia, o marido e outros dois filhos viviam num condomínio de classe média alta no interior paulista. O caçula havia começado a fumar maconha aos 11 anos, com amigos. Seu rendimento escolar despencou, ele trocou de amizades e se distanciou dos irmãos. “Achei que era um problema da idade, da adolescência”, diz Sônia. “Só percebi que eram as drogas quando antigos amigos dele me falaram que ele estava andando com uma turma barra-pesada.” Sônia procurou ajuda onde pôde. “Pesquisei na internet, em serviços públicos, paguei psicólogos, terapias, até a igreja eu procurei”, diz. A família decidiu tirar o filho da escola para distanciá-lo das amizades e vigiá-lo de perto. Ficava sob os cuidados do pai, vendedor de joias, que o levava até nas viagens de negócios. Em 2007, Sônia internou o filho em uma clínica para dependentes ligada a religiosos. O tratamento era baseado mais em ações espirituais do que terapêuticas, e não teve resultado. “Foi um tiro no pé, havia gente mais velha, e ali ele aprendeu tudo sobre as drogas.” Sônia decidiu então mudar de cidade. “Queria afastá-lo de tudo o que havia acontecido.” No começo, a estratégia deu certo: o filho passou um ano sem se drogar, começou a trabalhar em um pet shop e pensava em voltar a estudar. Mas houve uma recaída. Hoje, aos 17 anos, o caçula de Sônia está internado. Pela segunda vez, ele tenta largar o vício.
Os resultados distintos das experiências de Sônia e da família Larizzatti no combate às drogas mostram que não existe um método infalível. A internação numa clínica só deve ser considerada quando outras abordagens falham. “Os pais devem saber conversar com os filhos”, diz a psicóloga Lulli Milman, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), autora do livro Cresceram!!!: um guia para pais de adolescentes (Editora Nova Fronteira). “Quando descobrem que o filho fumou maconha na festa de sábado, alguns pais amplificam a questão e tratam o garoto como se fosse um traficante”, diz. Para ela, uma medida exagerada pode levar o filho a ficar por muito mais tempo no universo das drogas. Rejeitado em casa, ele pode buscar lugares onde seja mais aceito – ainda que esses locais coloquem sua vida em risco. “Pais que adotam esse discurso dogmático, sem muita relação com a realidade, tendem a se afastar dos filhos e ficar desacreditados por eles”, diz Lulli.
Marisa Cauduro
“A maior parte das pessoas faz uso consciente de drogas ilícitas da mesma forma que muitas pessoas usam álcool”, diz o antropólogo Edward MacRae, que também é pesquisador do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Eu frequento lugares em que vão jovens. Vejo que usam maconha, e isso não afeta seu desempenho de forma tão perceptível como ocorre com o álcool.” Nem todo usuário esporádico, porém, é capaz de abrir mão do consumo quando bem entender. “O uso recreacional é como uma roleta-russa”, diz Ruben Baler, pesquisador do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas (Nida, na sigla em inglês), dos Estados Unidos. Para ele, é impossível saber de antemão se alguém se tornará dependente ou não. O uso de drogas como válvula de escape aumenta na proporção da incapacidade dos jovens de aceitar a frustração. Mas muitos usuários não percebem quanto a droga se tornou parte de sua rotina até que tenham se tornado dependentes.
A melhor estratégia para afastar os jovens das drogas envolve uma abordagem múltipla. Primeiro, a intervenção da família, que não pode se acanhar ante o problema. Em seguida, vem o tratamento contra a dependência química, a busca de alternativas à droga – que pode ser pela fé ou por um novo propósito na vida – e o apoio comunitário (da igreja, dos amigos, dos grupos especializados como o Narcóticos Anônimos) para manter a pessoa longe do mundo das drogas.

CFM divulga diretrizes para tratamento contra o crack

Conselho Federal de Medicina elabora documento com procedimentos a serem adotados em três eixos – policial, saúde e social
 
Agência Brasil
 
O Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou nesta quarta-feira (10) um protocolo de atendimento voltado para usuários de crack. O documento, intitulado Diretrizes Gerais para Assistência Integral ao Crack, define procedimentos a serem adotados em três eixos – policial, saúde e social.
O primeiro inclui, por exemplo, ações de inteligência para reprimir a entrada da droga no país e mapear os principais pontos de venda do crack. O segundo trata da estruturação e capacitação do sistema público de saúde para receber usuários, além da implementação de Centros de Apoio Psicossociais (Caps), hospitais de apoio e grupos de autoajuda. No âmbito social, o documento prevê a criação de centros de convivência com biblioteca, lazer, cultura e inclusão digital.
Durante o lançamento do protocolo, o presidente do CFM, Roberto Luiz D'Avila, cobrou do governo federal um financiamento adequado para o enfrentamento ao crack.
“Precisamos que o Poder Público financie adequadamente essas ações. São ações múltiplas, não são só ações de tratamento médico e emergencial na fase aguda”, disse, ao destacar a necessidade de continuidade no tratamento. Segundo o CFM, um terço dos usuários de crack morrem em decorrência do uso da droga.
O vice-presidente do órgão, Carlos Vital Lima, também cobrou sensibilização por parte do governo federal no sentido de aumentar o financiamento de ações de combate ao crack.
“Precisamos ter um tratamento sistematizado. Não é uma questão apenas terapêutica, no sentido de medicamentos. É preciso enfrentar os fatores sociais, que são múltiplos, ter uma rede integrada de assistência. Processos de ordem social, como o desemprego, tem que ser combatidos. A questão do apoio do ponto de vista psicossocial tem que ser feito de maneira integrada”, disse.
Nesta terça-feira (9), durante audiência pública na Câmara dos Deputados, a secretária nacional de Políticas sobre Drogas, Paulina Duarte, informou que o orçamento anual da Senad é R$ 16 milhões. A expectativa para o próximo ano é que o montante chegue a R$ 100 milhões

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Uso "terapêutico" de álcool por ansiosos leva à dependência

Correio do Estado - DA REDAÇÃO

O hábito de consumir álcool para "afogar as mágoas" e aliviar o estresse pode ser uma porta de entrada para o alcoolismo para pelo menos um tipo de pessoa: aquelas com sintomas de ansiedade, segundo novo estudo de uma universidade do Canadá.

Poucas pesquisas sustentavam essa relação de causa e consequência até agora. Fazendo acompanhamento de saúde e entrevistas com mais de 34 mil pessoas nos EUA, cientistas concluíram que pessoas com problemas como transtorno de pânico ou fobias são especialmente vulneráveis a esse fator de risco.
Pacientes que praticavam o consumo "terapêutico" de bebidas alcoólicas (ou de qualquer outro tipo de droga) contra a ansiedade aumentaram de três a seis vezes o risco de dependência.
Na pesquisa, feita na Universidade de Manitoba (Canadá), 12,6% das pessoas com transtornos de ansiedade desenvolveram alguma forma de alcoolismo após usar a bebida como alívio.
Daqueles que tinham ansiedade, mas não praticavam "automedicação de sintomas com álcool", apenas 4,7% tiveram o problema.
"A análise sugere que 15,9% dos diagnósticos incidentes de transtornos do álcool nessa população podem ser atribuídos à automedicação com álcool", afirmam James Bolton e seus colegas, autores de um estudo publicado na revista "Archives of General Psychiatry".
CÍRCULO VICIOSO
Um outro efeito perverso foi o de que a dependência de álcool ou outras drogas agiu contra a melhora de sintomas de ansiedade a longo prazo. Atuando apenas de forma paliativa e circunstancial, a automedicação tinha uma tendência a se tornar vício.
O abuso de álcool e drogas foi particularmente alto como fator de risco para um tipo específico de transtornos de ansiedade: a fobia social.
Esse é o nome dado ao pavor de interação com outros por medo de reprovação, passar vergonha em público, humilhação etc.
"Uma possível explicação para isso é que a má aceitação social do uso de drogas pode criar um desejo de evitar contato social", afirma Bolton. "Outra é que esses indivíduos já tivessem uma fobia social abaixo do limiar [de diagnóstico], que foi exacerbada pelo uso de drogas."
Segundo o pesquisador, o transtorno de ansiedade acompanhado de dependência também é mais difícil de tratar, porque a abstinência pode provocar uma intensificação dos sintomas que são típicos da ansiedade.
"Ao identificar um comportamento real ou potencial de automedicação, os médicos podem trabalhar para prevenir o surgimento simultâneo da comorbidade [ansiedade ligada ao alcoolismo] em certos pacientes", diz.
(Com informações da Folha)

Mulheres fumantes tendem a ter mais doenças cardíacas que homens

Comunidade News

O documento afirma que fumar é uma das principais causas de doenças coronárias em todo o mundo.
As mulheres que fumam têm 25% mais chances de sofrer doenças cardíacas do que os homens.

São essas as conclusões de uma pesquisa que utilizou os dados de pouco menos de 2,4 milhões de pessoas com problemas cardíacos, realizada nos EUA por especialistas da Universidade de Minnesota e da Johhs Hopkins University, entre 1966 e 2010.
O estudo, publicado na revista médica especializada “Lancet”, afirma ainda que as mulheres em média fumam menos cigarros por dia do que homens, mas acrescenta que ainda assim elas têm mais chances de sofrer doenças coronárias se deveria a diferenças fisiológicas entre os dois sexos.
As mulheres, afirma a pesquisa, ‘’possivelmente extraem uma maior quantidade de cancerígenos e outros agentes tóxicos a partir da mesma quantidade de cigarros que os homens’’.
A teoria das diferenças fisiológicas, afirmam os analistas envolvidos com a pesquisa, pode ser reforçada, por estudos anteriores que mostraram que as mulheres fumantes têm o dobro do risco de sofrer câncer de pulmão do que homens.
Os pesquisadores afirmam que a diferença no percentual da incidência de doenças coronárias entre homens e mulheres fumantes pode ser ainda maior do que a cifra de 25%, já que em muitos países o hábito de fumar entre mulheres é mais recente do que entre homens.
O documento afirma que fumar é uma das principais causas de doenças coronárias em todo o mundo e ‘’continuará sendo enquanto populações que até recentemente haviam escapado incólumes da epidemia do fumo passarem a fumar em níveis só vistos anteriormente em países de renda elevada’’.
O problema, afirmam os analistas, pode ser ainda mais agravado, já que ‘’a popularidade do ato de fumar estaria aumentando entre mulheres jovens de países de renda baixa ou média’’.
Entre as conclusões presentes na pesquisa está a de que autoridades governamentais devem criar políticas específicas para coibir o vício do fumo entre as mulheres.
 

Por que SP não resolve o problema da cracolândia?

O Estado de S. Paulo – Caderno Metrópole

Do abandono das ruas ao desperdício de verba pública, entenda a história de degradação da região no centro e as possíveis soluções

Rodrigo Brancatelli

A cracolândia existe porque São Paulo deixou que aquela área no centro virasse um território autônomo, onde as leis funcionam de forma um tanto diferente, onde é considerado normal fumar crack, onde a procissão de drogados já não causa mais espanto nos paulistanos que acham que o problema das drogas nunca vai chegar a suas casas.
Anos e anos de negligência, gestão após gestão de promessas frustradas, a cracolândia virou a terra de homens e mulheres com cascões de sujeira no rosto e no corpo, escondidos em meio a papelões e cobertores sujos, que raspam a calçada em busca de migalhas que caem dos outros cachimbos. Um lugar onde não há nada além do abandono e da degradação.
O problema da cracolândia começa no fato de que os próprios moradores e governantes preferem não enxergar a região - é como se São Paulo tivesse virado as costas. A iluminação é deficiente, o policiamento é quase inexistente, as calçadas esburacadas, o lixo permanece acumulado... É como se, de fato, o uso de drogas fosse legalizado por ali - um cenário de completa omissão. Em tempo: a Prefeitura tem parados em caixa R$ 10 bilhões.
Atualmente, o governo promete internar de forma compulsória dependentes, construindo um centro de acolhimento onde serão feitos a triagem e o encaminhamento dos viciados. O histórico de promessas e obras da Prefeitura, no entanto, não é dos mais otimistas - 35 intervenções em pontos culturais e turísticos no centro da cidade foram realizados desde 1998, com investimento de R$ 1,2 bilhão. É o equivalente a 13 quilômetros de metrô ou 60 Centros Educacionais Unificados (CEUs). E sem resultado aparente.

 

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

CRACK: “INTERNAR À FORÇA RESOLVE?”

Para combater a epidemia de crack, autoridades decidem internar os dependentes compulsoriamente.

REVISTA ÉPOCA, 06/08/2011
Mariana Sanches, Matheus Paggi (texto) e André Valentim (fotos), com Eduardo Duarte Zanelato


RESIGNADO Um usuário de crack de 25 anos espera pelo transporte que o levará ao abrigo municipal. Ele aceitou a internação porque temia morrer do vício


A boca ferida, maltratada pelo uso contínuo de cachimbos precários, era uma das poucas partes do rosto de R. que o cobertor marrom e sujo deixava entrever. O corpo miúdo poderia facilmente ser confundido com o de um garoto de 14 anos. Os passos que o conduziam para fora da Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, eram apenas resignados, não mais relutantes. Enquanto caminhava, R. experimentava momentos de lucidez nos quais tentava resumir sua trajetória. Aos 25 anos, viciado em crack, sem ter onde dormir, exceto a rua, ele enfrentava o quarto dia sem comer. No dia 19 de julho, foi encontrado e levado à força pela equipe da Secretaria de Assistência Social do município do Rio de Janeiro. “Se for a salvação para mim, eu vou. Sabe por quê? Porque eu tô vendo que se eu ficar aqui, fumando oito, nove pedras por dia, eu não vou aguentar mais. Eu vou morrer.” Antes das 10 horas da manhã, R. já embarcara numa das quatro vans da prefeitura que levaria os usuários de crack recolhidos ali à delegacia e, depois, a algum abrigo para tratamento de dependentes químicos.
A ação da Secretaria de Assistência Social carioca é estridente. Desde maio, três vezes por semana, os agentes sobem os morros da cidade que continuam sob domínio do crime organizado para levar, na marra, os dependentes de crack que povoam as cracolândias da cidade. ÉPOCA acompanhou uma dessas operações no final do mês passado. O trabalho só é possível porque é apoiado por policiais civis e militares, empunhando armas de grosso calibre. Antes dos agentes, o blindado da PM conhecido como “caveirão” sobe o morro. Há troca de tiros entre a polícia e traficantes. Abordados pelos agentes, os usuários costumam reagir de modo arredio. A resposta vem na mesma proporção. O porte físico avantajado e a experiência como segurança de boate, constantes entre os agentes da secretaria, possibilitam que eles terminem por dominar os dependentes, embora com dificuldades.
As operações já resultaram no acolhimento de 1.319 pessoas (1.065 adultos e 254 crianças e adolescentes) em cracolândias. Segundo a prefeitura do Rio, nas áreas onde os viciados são tirados das ruas, o índice de pequenos roubos e furtos costuma cair até 50% nos primeiros dias. Depois de levados das favelas, crianças, adolescentes e adultos têm destinos diferentes. Todos os menores de 18 anos encontrados, de quem o Estado passa a ser o tutor, ficarão cerca de três meses internados contra a própria vontade (e de sua família, eventualmente) em alguma unidade terapêutica da prefeitura. São casas com psiquiatras, clínicos gerais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e grades. Grades por todos os lados. A prefeitura do Rio está convencida de que, sem elas, de nada adianta ter os melhores profissionais. A recuperação seria inviável. Ainda assim, nem sempre se consegue evitar a fuga dos pacientes. Para os adultos, a internação compulsória ainda não é a regra, embora já ocorra em alguns casos, sempre autorizados por um juiz. A prefeitura do Rio afirma que gostaria de adotá-la em larga escala, mas que ainda não encontrou um meio legal de promovê-la.


À FORÇA
Dependentes químicos menores de idade são levados para internação compulsória em operação da Secretaria de Assistência Social do Rio. As operações começaram em maio e já recolheram mais de 1.300 pessoas

A medida de internação à força do Rio de Janeiro é pioneira, tem provocado polêmica, mas conquistado cada vez mais adeptos entre os gestores públicos. No Congresso, tramita um projeto de lei que propõe extinguir a necessidade de ação judicial para internar alguém à força. No governo federal, há autoridades simpáticas à ideia. Em São Paulo, onde há a maior cracolândia do país, depois de dois anos de uma política de convencimento de dependentes para que aceitassem voluntariamente ser tratados, a experiência carioca poderá ser repetida em breve. A Procuradoria-Geral da cidade deu um parecer favorável à internação compulsória de usuários de crack. A decisão agora cabe ao prefeito Gilberto Kassab, que já admitiu publicamente ver a internação forçada como uma resposta para o histórico problema do município. Estima-se que, pela cracolândia paulistana, perambulem quase 2 mil pessoas diariamente. A internação na marra funciona? Representa uma solução para as famílias que sofrem o drama de ter dependentes em crack?
A despeito das críticas daqueles que veem na proposta apenas uma tentativa de limpar as ruas, diversos motivos empurram os governantes à medida extrema da internação compulsória. A droga surgiu no Brasil no fim da década de 1980 e ficou restrita aos grandes centros urbanos e às populações de classe baixa por mais de uma década (leia o quadro abaixo). Nos últimos anos, o crack se espalhou pelo país, atingiu todas as classes sociais e ganhou contornos de epidemia. Nas eleições presidenciais do ano passado, o combate à droga emergiu como um dos assuntos mais discutidos da campanha. Na ocasião, a então candidata petista, Dilma Rousseff, chegou a declarar que o crack era “uma das questões mais desafiantes” de sua futura gestão.
Não existem estatísticas sobre o número de usuários no Brasil. Uma estimativa feita pela Frente Parlamentar Mista de Combate ao Crack, com base nos dados do Censo de 1999 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sugere que eles sejam 1,2 milhão de pessoas. O governo federal deverá divulgar nas próximas semanas os resultados da maior pesquisa já feita sobre o assunto no país. Foram ouvidos 50.890 estudantes de ensino fundamental e médio em todas as capitais e no Distrito Federal. Deles, 0,6% admitiu já ter usado crack ao menos uma vez na vida. Parece pouco se comparado ao número dos que já provaram maconha (5,7%) ou álcool (60,5%). Mas não é. “As pessoas de bom-senso sabem que estamos diante de uma epidemia de crack”, diz o médico Drauzio Varella, favorável à internação compulsória.
A comparação entre o número de usuários de crack e os de outras drogas, como maconha e álcool, também não revela a magnitude dos prejuízos físicos e sociais que cada uma dessas drogas produz. “Existem dois tipos de usuário: aqueles que usam compulsivamente a droga até acabar e que, tão logo acabe, partem em busca de mais e aqueles que fazem um uso controlado da substância”, afirma o psiquiatra Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “A grande maioria dos usuários de crack pertence ao primeiro grupo.” A necessidade de repetir o êxtase obtido no consumo da pedra pode levar o viciado a abandonar a própria casa e a família e a cometer crimes. Maltrapilhos, vagando pelas ruas em meio a lixo e entulho e sob o constante delírio provocado pelas baforadas de crack, eles parecem estar completamente desprovidos da capacidade de escolher, de exercer as próprias vontades com autonomia. De acordo com os defensores da medida, esse estado degradado dos dependentes justifica a internação compulsória.
A vida de A., de 14 anos, é uma sucessão de evidências favoráveis a esse argumento. Viciada em crack desde os 9, ela chegou a se prostituir para comprar a pedra. Nas cracolândias, contraiu HIV, sífilis e tuberculose. Internada compulsoriamente no Rio há dois meses, tenta se recuperar do vício. Simpática, revela, ao fim de cada frase triste, um sorriso banguela. O dente perdido é uma das consequências de sua compulsão química. Desesperada para fumar e sem dinheiro, aos 11 anos A. surrupiou uma pedra de R$ 5 do estoque de um traficante. Descoberta, levou uma surra que lhe extirpou parte do sorriso. Nas regras de conduta rígidas do crime, é razoável considerar que A. teve sorte de não ter sido morta. Os criminosos parecem ter entendido antes do Estado o potencial devastador do crack. Nas cadeias brasileiras sob mando do crime organizado, a lei tácita dos presos é taxativa: é proibido o consumo de crack atrás das grades. “Nos presídios do país, as facções chegaram à conclusão de que era melhor abolir o crack porque o uso acaba por interferir na hierarquia da cadeia e atrapalha o negócio. Se você fuma crack dentro da cadeia, toma uma surra que nunca mais esquece. E, se você trafica, eles te matam”, diz Drauzio Varella.

RESISTÊNCIA
Uma usuária de crack na Favela do Jacarezinho, no Rio. Aparentando estar grávida, ela se recusava a ser internada

Fora dos presídios, nem o Estado nem as famílias conseguiram exercer um controle sobre o uso do crack tão estrito como o imposto pelas facções criminosas. Nenhuma das tentativas feitas pela camareira Terezinha dos Santos, de 38 anos, do Rio de Janeiro, de amarrar os pés e as mãos da filha para mantê-la em casa funcionou. Viciada em crack, era comum que J. passasse temporadas fora de casa. “Ela saía de casa arrumada, com uma roupa bonita. Voltava dias depois, com outra roupa, fedendo, machucada, faminta e agressiva”, diz Terezinha. “A gente sabia que ela saía, mas não sabia se voltava.” Da última vez que fugiu para a cracolândia, J. não voltou. Foi encontrada pela equipe de assistência social do Rio dez dias depois de ter saído de casa. Ela resistiu à abordagem e não admitia estar grávida de oito meses. Como já tinha 22 anos, não poderia ficar internada compulsoriamente sem uma decisão judicial. Depois de capturada pela assistência social, ela teria direito a sair do abrigo.
A prefeitura do Rio e a mãe da garota recorreram ao Judiciário. “Foi uma luta para conseguir uma decisão judicial que obrigasse ela a ficar internada”, diz Terezinha. J. passou o fim da gravidez num quarto de hospital vigiado por policiais, que a impediram de fugir. Depois de nascer, o bebê teve de passar por uma desintoxicação durante dez dias. “Ela não tinha noção do que estava fazendo, não tinha como decidir nada, e isso era claro. Mas eu não conseguia interná-la à força porque o processo judicial é complicado”, diz a mãe. A depender do Legislativo, é possível que outras mães sejam poupadas do périplo de Terezinha. O deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS) propôs, em projeto de lei, extinguir a necessidade de uma decisão judicial para internar um dependente à força. A palavra de um médico bastaria como aval para que a família ou o Estado ponham, na marra, crianças ou adultos em hospitais. A proposta já foi aprovada na Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados e deverá ser encaminhada ao plenário nos próximos meses. Se aprovada, permitiria uma onda de internações compulsórias.
A aprovação da lei pode gerar uma grande discussão judicial, já que alguns juristas interpretam-na como inconstitucional, por ferir o direito de ir e vir garantido aos cidadãos pela Carta Magna de 1988. A Ordem dos Advogados do Brasil manifestou-se publicamente contra a medida da prefeitura do Rio. “As pessoas maiores de idade, salvo se interditadas, podem praticar todos os atos da vida civil: podem votar, podem casar, ir aonde quiserem. Em hipótese alguma, podem ser compulsoriamente internadas. Vou até mais longe: se o Kassab e os outros governantes insistirem nisso, correrão o risco até de parar num tribunal penal internacional por praticar crime contra a humanidade”, afirma o jurista Wálter Maierovitch. Os defensores da medida lembram que a mesma Constituição garante o direito à vida aos cidadãos. “Vamos botar na balança: o que é mais importante? O direito à vida e à saúde ou o direito de ir e vir?”, diz o promotor Marcelo Luiz Barone, de São Paulo. Barone faz parte do grupo do Ministério Público paulista que se dedica a estudar formas de pôr em prática uma interdição judicial coletiva aos crackeiros da cidade. “O bem maior garantido pela Constituição é a vida do ser humano”, afirma.
O tema é especialmente sensível porque, há mais de 20 anos, o movimento mundial antimanicomial luta para pôr fim aos hospitais psiquiátricos, em que se encarceravam por décadas doentes mentais e dependentes químicos. “Nenhum país democrático do mundo tem instituições fechadas”, diz a vice-prefeita de São Paulo, Alda Marco Antonio (PMDB), que acumula a função de secretária de Assistência Social. A despeito de ser integrante da gestão Kassab, Alda se opõe à internação compulsória. A Europa descreveu o caminho oposto àquele ao qual o Brasil parece rumar na tentativa de combater a dependência química. Diante dos maus resultados dos parques de consumo, em países como Suíça e Holanda, os governos locais optaram por criar as “narcossalas”, espaço em que o uso da droga é liberado, mas controlado, e em que se aplicam técnicas de redução de danos. De acordo com o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), nenhum país do continente adota medidas de internação compulsória.
Nos Estados Unidos, o Estado propôs outra maneira de levar viciados ao tratamento. Criou cerca de 1.400 tribunais exclusivos para os usuários de drogas, em todo o país. Dependentes químicos apanhados com drogas, em vez de prisão, são obrigados a ficar internados para combater o vício. No Brasil, desde 2006, os usuários de droga não podem ser punidos com prisão. Os críticos da adoção da internação compulsória como política pública veem na medida uma reversão da tendência mais humanizada no tratamento aos viciados em drogas. Segundo essa visão, seria aberto um perigoso precedente para a reedição, no mundo real, de enredos como o do filme Bicho de sete cabeças, em que um usuário de maconha é internado à força num manicômio. O assunto divide até mesmo o governo federal. Segundo ÉPOCA apurou, o Ministério da Justiça aceita discutir a ideia da internação forçada. No Ministério da Saúde, há resistência.

RECUPERAÇÃO
Terezinha dos Santos, mãe de uma jovem de 22 anos recolhida aos oito meses de gravidez de uma cracolândia do Rio. João Victor Melhado, de 29 anos. Dependente de crack por seis anos, ele foi internado nove vezes. Só se recuperou depois de se internar por vontade própria

Há ainda a discussão sobre a eficácia da internação compulsória. Os psiquiatras dizem que ela pode funcionar ou não – e que o sucesso da internação, voluntária ou involuntária, depende da reinserção social e do acompanhamento cuidadoso do paciente depois da alta. “Nos casos mais graves, a internação é a alternativa mais segura. O ideal seria que ninguém precisasse disso, mas a dependência química é uma doença que faz com que a pessoa perca o controle”, afirma o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, favorável à medida.
Baseado em sua própria experiência, João Victor Melhado, de 29 anos, coordenador de uma casa de tratamento de dependentes químicos, é taxativo ao discordar e dizer que internar à força não funciona. Durante seis anos, ele foi viciado em crack. Chegou a gastar R$ 1.200 por mês em drogas. O desespero da família de classe média, do interior paulista, levou-o a nove internações. Numa delas, foi carregado na marra. “Acordei com três caras em volta de mim. Eles me algemaram e me enfiaram num camburão. Eu nem sabia se estava sendo levado para a prisão. Só descobri depois de chegar lá que estava numa clínica particular de recuperação”, diz Melhado. Em dois meses, ele conseguiu fugir do lugar e voltou ao crack. Sua recuperação só aconteceu quando, em 2009, por vontade própria, ele se internou. Passou um ano em tratamento. Está há dois anos sem usar drogas e agora trabalha para recuperar outros jovens. “Não adianta chamar ambulância, forçar, enjaular. Eu já passei por isso e sei que não recupera ninguém”, afirma Melhado.
A garota A., do Rio, afirma que é somente graças à internação forçada que ela está viva. Faltava à menina discernimento e condições psíquicas de pedir ajuda. “Cheguei aqui pesando 23 quilos. Agora estou com 50 e poucos. Aqui é tudo bom, tem comida na hora certa, os educadores são bons”, diz. Ainda assim, o comportamento de A. não dissimula a dificuldade da jornada. Entre os sorrisos e as brincadeiras, ela implora a uma das educadoras um cigarro para saciar sua fissura.
Além da discussão legal, médica e filosófica, há problemas práticos. O Estado brasileiro dispõe de escassas vagas para internação – compulsória ou não – e tratamento de dependentes químicos. Em São Paulo, há 317 leitos para esse fim, entre parcerias com instituições privadas e o serviço da própria prefeitura, criado no ano passado nas instalações de um antigo motel. O problema se repete sistematicamente nos grandes e pequenos municípios do Brasil. E manter essa população internada sai caro. No Rio de Janeiro, cada criança abrigada compulsoriamente no serviço da prefeitura custa cerca de R$ 3 mil por mês. Em São Paulo, a manutenção de hospital com 80 leitos municipais exige R$ 1,3 milhão mensais.

SEM AUTONOMIA
Aglomeração de usuários de crack no bairro da Luz, em São Paulo, por onde circulam cerca de 2 mil pessoas por dia. A prefeitura estuda adotar a internação compulsória porque entende que os dependentes não são mais responsáveis por si mesmos
Uma alternativa tem sido encaminhar dependentes a comunidades terapêuticas, a maioria ligada a instituições religiosas. Uma das maiores em atividade no Brasil, a católica Fazenda da Esperança abriga quase 2 mil pessoas em 55 unidades espalhadas pelo país. O tratamento, que dura um ano, consiste em manter uma rotina de trabalho e convivência comunitária e exercitar a espiritualidade. Não há remédios ou acompanhamento médico. Só são aceitos dependentes que queiram se tratar. Desde janeiro, a Fazenda da Esperança firmou uma parceria com a prefeitura de São Paulo e tem tentado convencer os usuários da cracolândia paulistana a se internar. Até agora, apenas 12 aceitaram a ideia. “O prefeito Kassab veio aqui, demonstrou sua preocupação de não saber o que fazer, eu disse a ele que podia oferecer o nosso jeito”, afirma o idealizador do projeto, o frei alemão Hans Stapel. “Mas o alertei de que não aceito mudanças e não vou internar ninguém à força.”
Segundo Stapel, cerca de 80% dos pacientes tratados por seu método se mantêm distantes da droga, um porcentual de sucesso superior à taxa de recuperação média das clínicas, que recuperam entre 20% e 30% dos dependentes. O papel da religião na recuperação dos viciados provoca controvérsia. “A dependência química é uma doença complexa e requer um tratamento complexo. Não vai ser com oração que você vai tratar adolescente dependente de crack”, diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira. Mas trabalhos realizados por psiquiatras têm demonstrado que a religião pode funcionar como um meio de reinserção social e afastar o risco da dependência. Em 2004, uma pesquisa feita pela Unifesp com jovens moradores de favelas de São Paulo em que havia prevalência de tráfico de drogas mostrou que aqueles que não se tornavam dependentes químicos atribuíam sua distância dos narcóticos ao respeito à mãe e, em segundo lugar, à religiosidade.
Não há respostas fáceis para o tratamento dos dependentes químicos, especialmente no caso de uma droga tão destrutiva como o crack. “A internação compulsória é um recurso extremo, e não podemos ser ingênuos e dizer que o cara fica internado três meses e vira um cidadão acima de qualquer suspeita. Muitos vão retornar ao crack. Mas, pelo menos, eles têm uma chance”, diz Drauzio Varella. Longe de ser uma solução ideal, a internação compulsória talvez seja a única resposta para os casos mórbidos criados pelo vício em crack.