A alta prevalência de uso de substâncias psicoativas em
pacientes com transtornos psiquiátricas tem recebido atenção cada vez maior por
parte dos pesquisadores. Transtorno Bipolar e Alcoolismo são doenças familiares
com fatores genéticos implicados na sua etiologia. A relação genético-familiar
entre ambas é controversa e tem sido estudado de forma insuficiente. Nos
últimos anos, inúmeros pesquisadores tem demonstrado interesse crescente e
destacado a relação entre Transtorno de Humor Bipolar e Alcoolismo, num espectro
muito mais amplo que uma simples comorbidade entre duas patologias
psiquiátricas de importância no contexto social.
O Alcoolismo tem se mostrado mais comum na população de
pacientes com Transtorno de Humor Bipolar (THB) do que na população em geral.
Estudos genéticos em famílias desses pacientes podem identificar causas de
excesso de comorbidade entre as duas patologias. O termo comorbidade neste
trabalho relaciona-se ao cálculo feito para avaliar-se a chance de duas
patologias ocorrerem ao mesmo tempo em um mesmo indivíduo a partir das
prevalências em separado. Sendo assim, o chamado excesso de comorbidade
caracteriza uma associação (concomitância) de prevalências mais freqüentes do
que a esperada em separado, destacando neste trabalho a associação entre
Transtorno de Humor Bipolar e Alcoolismo.
Recentes estudos epidemiológicos tem mostrado
convincentemente que os diagnósticos de Transtorno Bipolar e Alcoolismo ocorrem
mais freqüentemente juntos do que o esperado pela chance. Por exemplo, o ECA,
Epidemiological Catchment Area Study (Regier et al 90), relatou em estudo
multicêntrico uma taxa alta de comorbidade entre Transtorno Bipolar e
Alcoolismo com Odds ratio de 6.2, destacando que o THB é a patologia de Eixo I
mais associada com Alcoolismo. As razões para esta alta prevalência de
comorbidade permanecem obscuras. Maier (1996) em seu trabalho, mostra
prevalência de 8,3% para Dependência ao Álcool. Entre os pacientes com
Transtorno de Humor Bipolar, 40,6% (Odds Ratio 5.6) apresentaram Abuso ou
Dependência ao Álcool. A análise das características da co-ocorrência e
co-transmissão do Transtorno de Humor Bipolar e Alcoolismo em famílias pode
prover dados para o entendimento da alta comorbidade entre estas duas
patologias na população geral, mostrando que estas representam a comorbidade
mais prevalente entre os diagnósticos psiquiátricos de eixo I (CID-10 e
DSM-IV).
"Compartilhar fatores de risco familiar" inclui
alta prevalência de Alcoolismo em familiares de pacientes bipolares
"puros", além da presença concomitante de Transtorno Bipolar e
Alcoolismo em familiares de pacientes com ambas as patologias. Seu pior curso e
prognóstico em relação aos diagnósticos em separado parece estar relacionado `a
identificação unicamente do diagnóstico primário, deixando de atender o
diagnóstico secundário, que se não prevenido e tratado adequadamente,
desenvolve novo ciclo da doença (Ex: Episódio maníaco desencadeando aumento da
ingesta alcoólica).
Winokur et al (1967), num estudo pequeno, sem grupo-controle
encontraram maior prevalência de Alcoolismo em familiares de primeiro grau de
pacientes com transtorno de Humor Bipolar, especialmente nos casos de início
precoce da doença afetiva. O trabalho de Strakowski (1992) avaliou outros
diagnósticos psiquiátricos em quarenta e um pacientes hospitalizados pela
primeira vez devido a episódio maníaco, e encontrou 24,4% dos pacientes
internados no primeiro episódio por mania com diagnóstico de abuso ou
dependência ao álcool, sendo esta a maior comorbidade psiquiátrica encontrada
neste estudo.
Weiss (1987) hipotetiza que pacientes bipolares usam
substâncias psicoativas com o intuito de auto-medicação de seus sintomas de
humor e que o abuso e dependência ao álcool pode precipitar ou perpetuar
episódios de humor.
Brady (1992), relacionando o curso da doença em pacientes
com Transtorno Bipolar e Alcoolismo com outros somente apresentando Transtorno
Bipolar verificou um pior curso, com sintomas mais proeminentes nos pacientes
com Transtorno Bipolar e Alcoolismo, demonstrando a influência negativa do
abuso de substâncias psicoativas, neste caso o álcool, no curso e prognóstico
do Transtorno Bipolar. Também mostrou que pacientes que apresentam
concomitantemente o Transtorno de Humor Bipolar e Alcoolismo, apresentam melhor
resposta terapêutica ao uso de anticonvulsivantes em relação ao Lítio,
provavelmente relacionado ao efeito GABAérgico. Este fato levanta a hipótese de
que o álcool, por meio deste mesmo efeito GABAérgico apenas inicial, venha
sendo usado para fins "terapêuticos" em pacientes Bipolares, com
resultados posteriores desastrosos no tocante ao prognóstico. Este trabalho
sugere a existência de uma forma independente de transmissão entre o Transtorno
Bipolar e o Alcoolismo. Reich (1974) mostrou que 31% dos pacientes
identificados com Transtorno de Humor Bipolar e Alcoolismo bebiam
excessivamente, em maior quantidade na mania, para acalmarem-se. Uma maior
prevalência de Alcoolismo em pacientes com Transtorno de Humor Bipolar e seus
familiares e vice-versa pode corroborar a possibilidade de um envolvimento
genético comum entre estas duas patologias, com potencial futuro para
identificação de um diagnóstico único (por EX: Agorafobia com ou sem Pânico).
Winokur et al (1993) coloca que a taxa de Alcoolismo em
pacientes com Transtorno de Humor Bipolar pode estar relacionada ao aumento da
ingesta alcoólica em pacientes durante os episódios maníacos, que o Alcoolismo
pode ser um fator predisponente a Mania ou que Alcoolismo e Mania são
expressões iguais de um mesmo fator genético.
Winokur et al (1995) em estudo prospectivo de 5 anos, amplo,
criterioso e multidirecional com mais de 200 bipolares com e sem alcoolismo (2
grupos) e seus familiares concluiu que a relação familiar entre Transtorno
Bipolar e Alcoolismo é mais forte que entre Depressão Maior e Alcoolismo, não
explicado pela simples prevalência destas patologias. O trabalho conclui
demonstrando uma pequena correlação entre componentes familiares de pacientes
Bipolares e Alcoolistas. Os familiares de pacientes com Transtorno de Humor
Bipolar e Alcoolismo concomitantemente (BIPALCO) apresentaram maior prevalência
de Transtorno de Humor Bipolar comparados com Bipolares "puro",
Alcoolistas e grupo controle. Os autores expressam que BIPALCO seria uma
entidade nosológica `a parte e não a presença de duas patologias separadamente,
como simples comorbidade. Os autores referem que durante um episódio maníaco há
aumento do consumo de álcool em 40% dos casos. Reiteram como possíveis bases
etiológicas para a excessiva comorbidade entre Transtorno de Humor Bipolar e
Alcoolismo as seguintes hipóteses:
Que o problema primário, segundo cronologia de início
anterior (poucos casos segundo gravidade) é o Transtorno de Humor Bipolar e que
o Alcoolismo seria secundário, hipótese esta sugerida pelos autores.
Que o Transtorno de Humor Bipolar e o Alcoolismo sejam
apenas uma real comorbidade, uma mera coincidência. Consideram improvável, pois
a associação tem mostrado muito maior freqüência que a possibilidade de chances
em separado. Além disso consideram que o Alcoolismo a nível de sistema nervoso
central pode induzir Mania não como causa única, mas multifatorial, incluindo
dano cerebral. Consideram o Transtorno de Humor Bipolar transmitido com uma
base genética poligênica e que os fatores genéticos envolvidos no Alcoolismo
são compartilhados e predispõem ao aparecimento do THB. Encontraram em relação
aos pacientes com Transtorno de Humor Bipolar e Alcoolismo, que seus familiares
de primeiro grau com Transtorno Bipolar apresentaram maior taxa de Alcoolismo
que parentes de Bipolares sem Alcoolismo, enfatizando a base etiológica
poligênica.Concluem a partir da observação, que o Alcoolismo secundário em
pacientes bipolares é mais propenso a remitir que Alcoolismo primário e
vice-versa, enfatizando a relação primário-secundário relacionado a remissão de
sintomas e conseqüente prognóstico. Esta idéia é corroborada neste artigo pelo
achado de um menor número de episódios de humor em pacientes com Alcoolismo
primário comparado com THB como patologia primária. Torna-se de suma
importância diferenciar, embora algumas vezes difícil, entre quadro primário de
Transtorno de Humor Bipolar e secundário de Alcoolismo ou vice-versa. Isto
justifica-se pelo fato do Transtorno de Humor Bipolar ser importante fator de
risco para dependência química, poder modificar o curso do Alcoolismo, além de
seus sintomas poderem emergir da intoxicação.
Outros autores sugerem em trabalho controlado com
metodologia bem delineada que o Alcoolismo familiar pode contribuir para a
vulnerabilidade ao Transtorno Bipolar e que existe hereditariedade
compartilhada entre as duas patologias através de maior taxa de Alcoolismo em
familiares do grupo de pacientes com Transtorno Bipolar e Alcoolismo (BIPALCO)
comparado ao grupo somente com Transtorno Bipolar e grupo controle (Winokur,
Akiskal et al 1996).
Brady et al (1995) concluiram que o Transtorno de Humor
Bipolar associado ao Alcoolismo apresenta início mais precoce e pior curso
comparado ao Transtorno Bipolar sem Alcoolismo, além de apresentar-se mais
freqüentemente com humor irritável e disfórico, maior tendência a quadros
mistos e ciclagem rápida, bem como maior número de internações. Todos estes
aspectos presentes predizem má evolução prospectiva do quadro. Enfatizam que a
relação entre Transtorno de Humor Bipolar e Alcoolismo não baseia-se
simplesmente em causa e efeito, é bidirecional e complexa. Coloca a necessidade
de abstinência ao álcool para real identificação e confirmação de quadro de
humor primário, já que a redução dos sintomas depressivos devido ao álcool
ocorre somente 2 a 4 semanas após interromper o uso do álcool e para os
sintomas maníacos, em média de 2 a 3 dias.
A identificação de fatores familiares relacionados a estas
duas patologias de extrema importância em saúde pública torna-se fundamental em
nível de prevenção e tratamento, principalmente porque a alta freqüência de
aparecimento concomitante destes dois transtornos reforça a necessidade de um
programa integrado de prevenção e tratamento em conjunto quando identificados
de tal forma.
Autores
Rodrigo Machado Vieira*
* Supervisor do Serviço de Psiquiatria-Fundação Faculdade
Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre.