segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Mortalidade do alcoolismo no Brasil é quase tão grande quanto a do crack

Band FM


O índice de mortalidade entre dependentes de álcool no Brasil está próximo do registrado entre usuários de crack. Pesquisa inédita feita pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostra que, em cinco anos, 17% dos pacientes atendidos em uma unidade de tratamento da zona sul de São Paulo morreram.
"É um número altíssimo. Na Inglaterra, o índice não ultrapassa 0,5% ao ano", diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador do estudo.
O trabalho, que será publicado na próxima edição da Revista Brasileira de Psiquiatria, segue uma linha de pesquisa de Laranjeira sobre morte entre dependentes de drogas. O estudo feito entre usuários de crack demonstrou que 30% morreram num período de 12 anos. "Naquela mostra, a maior parte dos pacientes morreu nos primeiros cinco anos. Podemos dizer que os índices estão bastante próximos."
O estudo sobre dependência de álcool procurou, depois de cinco anos, 232 pessoas que haviam sido atendidas num centro do Jardim Ângela, zona sul, em 2002. Desse grupo, 41 haviam morrido - 34% por causas violentas, como acidentes de carro ou homicídios. Outros 66% foram vítimas de doenças relacionadas ao alcoolismo. "Os resultados estampam a falta de uma rede de assistência para esses pacientes. Todas as fases do atendimento são deficientes: desde o serviço de urgência, para o dependente em crise, até a rede de assistência psicossocial", diz Laranjeira.
Violência. Os altos índices de mortalidade são explicados por Laranjeira. Entre dependentes de álcool, principalmente nos casos mais graves, pacientes perdem o vínculo com a família, com o trabalho e adotam atitudes que os expõem a riscos, como sexo sem preservativo ou brigas.
A velocidade desse processo é maior entre pessoas de classes menos privilegiadas, avalia Laranjeira. "Como em qualquer outra doença, pessoas que têm acesso a um serviço de melhor qualidade têm mais chances de controlar o problema. Daí a necessidade de equipar melhor a rede pública", comparou.
O grupo avaliado na pesquisa da Unifesp ilustra esse processo. A totalidade dos pacientes atendidos era de classe E e D - 52,2% estavam desempregados. A idade média dos entrevistados era de 42 anos. "Debilitados e sem dinheiro, esse grupo dificilmente consegue se inserir novamente na sociedade", completou.
A ligação com a violência também está clara. O trabalho mostra que entre sujeitos que consumiram álcool, o risco de estar envolvido com crime era 4,1 vezes maior que entre os abstêmios.
Laranjeira lembra que o Jardim Ângela é bairro de periferia. "Mas os baixos indicadores dos pacientes analisados na pesquisa estão longe de refletir a população do bairro. Ali há economia, pessoas estão empregadas."
Religião. Além da alta mortalidade, a pesquisa conclui que atividades religiosas exercem um efeito protetor sobre os dependentes. Entre os que pertenciam a algum grupo, incluindo os de autoajuda, os índices de participação em crimes eram menores que entre os demais. Dos entrevistados que faziam parte de algum grupo religioso, 30,6% não tiveram participação em crime. Entre os que não estavam ligados a nenhum grupo religioso, 18% conseguiram se manter afastados de crimes.
"Num cenário de total desassistência, é ali que o grupo conseguiu apoio", diz Laranjeira. Um resultado que, na avaliação do pesquisador, é muito importante de ser considerado. "Numa doença que apresenta um índice de mortalidade de 17%, qualquer fator protetor deve ser estimulado, sem preconceito." Justamente por isso ele não hesitaria em recomendar para os pacientes procurarem grupos de apoio, incluindo os de natureza religiosa.

Estudo afirma que maconha causa 'caos cognitivo' no cérebro

DA EFE

O consumo de maconha está associado a alterações na concentração e na memória que podem causar problemas neurofisiológicos e de conduta, indicou nesta terça-feira (25) um estudo publicado pela revista Journal of Neuroscience.
Os pesquisadores descobriram que a atividade cerebral fica descoordenada e inexata durante os estados de alteração mental com resultados similares aos observados na esquizofrenia.
O estudo, produzido por cientistas da Universidade de Farmacologia de Bristol (Inglaterra), analisou os efeitos negativos da maconha na memória e no pensamento, o que pode provocar redes cerebrais "desorquestradas".
O doutor Matt Jones, um dos autores da pesquisa, equiparou o funcionamento das ondas cerebrais ao de uma grande orquestra na qual cada uma das seções vai estabelecendo um determinado ritmo e uma afinação que permitem o processamento de informações e que guiam nosso comportamento.
Para testar a teoria, Jones e sua equipe administraram em um grupo de ratos um fármaco que se assemelha ao princípio psicoativo da maconha, a cannabis, e mediram sua atividade elétrica neuronal.
Embora os efeitos nas regiões individuais do cérebro tenham sido muito sutis, a cannabis interrompia completamente as ondas cerebrais através do hipocampo e do córtex pré-frontal, como se as seções de uma orquestra tocassem desafinadas e fora de ritmo.
Jones indicou que estas estruturas cerebrais são fundamentais para a memória e a tomada de decisões e estão estreitamente vinculadas à esquizofrenia.
Os ratos se mostravam desorientadas na hora de percorrer um labirinto no laboratório e eram incapazes de tomar decisões adequadas.
"O abuso da maconha é comum entre os esquizofrênicos, e estudos recentes mostraram que o princípio psicoativo da maconha pode provocar sintomas de esquizofrenia em indivíduos sãos", explicou Jones.

FONTE: Folha.Com

Pesquisa revela que família não admite culpa por vício de filho

Trabalho revela que, embora sejam os primeiros a descobrir o vício, familiares responsabilizam fatores externos pelo problema

O Estado de S. Paulo 19 de março de 2010

Uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) traça pela primeira vez um perfil da família do dependente de drogas no Brasil. O trabalho, baseado na entrevista de 500 pessoas que procuram grupos de ajuda Amor Exigente, revela que, embora sejam os primeiros a descobrir o vício, familiares responsabilizam fatores externos pelo problema.
"Há um processo longo até a descoberta. Quando isso ocorre, boa parte dos familiares avalia que o uso de drogas ilícitas é resultado da influência de más companhias ou da falha de autoestima do paciente", afirma a coordenadora do trabalho, Maria de Fátima Rato Padin.
De acordo com o estudo, em 68% dos casos, a descoberta foi feita por um familiar que percebeu mudanças de comportamento e, na grande maioria, por mulheres. "São companheiras dos usuários ou mães", diz a pesquisadora. Muitas delas ficam deprimidas. "Hoje tenho consciência de que assumia parte da culpa.
E, principalmente, assumia a responsabilidade de resolvê-lo", conta a jornalista Cleide Canduro, de 53 anos. Mãe de quatro filhos, ela descobriu, há oito anos, que três haviam usado entorpecentes.
"Dois apenas tiveram contato. Mas um deles usava de forma abusiva, afetando estudos, o rendimento nos esportes, a convivência." Ele associava maconha e álcool. E uma das grandes surpresas do trabalho é o fato de a maconha ser a droga mais frequente e de maior preferência dos usuários, de acordo com a percepção da família. "Há sempre a ideia de que maconha traz poucos prejuízos. Mas, para familiares, isso está longe de ser verdade", afirma Maria de Fátima.

O trabalho retrata o difícil caminho atrás de atendimento. "As famílias estão muito desamparadas e, principalmente, não encontram nível de informação adequado", diz a pesquisadora. Segundo o estudo, 61,6% desconhecem, por exemplo, os serviços dos Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas (Caps). E, antes de recorrer aos grupos de ajuda mútua, entrevistados já haviam passado por uma série de tentativas: desde internação dos pacientes, atendimento psicológico e psiquiátrico até procura de grupos religiosos.

TRATAMENTO

Cleide, por exemplo, recorreu a várias alternativas antes de procurar um grupo de ajuda. Somente depois de um ano nesse grupo é que veio a decisão de internar seu filho. "Demorei a admitir que ele tinha problemas com drogas. Demorei a tomar uma atitude mais firme", completa. Hoje ela percebe que isso não é incomum. "As notas dos filhos pioram, eles chegam em casa bêbados. Mas é sempre mais confortável aceitar a versão deles: de que professores são ruins, de que a bebedeira foi episódio passageiro ou resultado da combinação de álcool com estômago vazio", diz Cleide.
Para Maria de Fátima, uma das principais conclusões de sua pesquisa é a necessidade de ampliar o acesso a informações sobre serviços existentes e, sobretudo, ampliar a oferta de tratamento ao dependente.

Hospitalizações por consumo de energéticos disparam nos EUA

O número de pessoas hospitalizadas nos EUA por causa do consumo de energéticos aumentou de 1.128 em 2005 para 13.114 em 2009, último ano com dados disponíveis.
A informação vem da agência de serviços de saúde para abuso de substâncias e saúde mental dos EUA. Em 44% dos casos, o problema tem origem na mistura de energéticos com álcool, remédios ou drogas ilícitas.
A maioria das visitas ao pronto-socorro foram feitas por homens com idades entre 18 e 39 anos.
Os pesquisadores da agência não disseram quais sintomas levaram as pessoas ao hospital.
Outros estudos já indicaram que o abuso de energéticos pode causar arritmia cardíaca, hipertensão e desidratação, mesmo sem a mistura com álcool.
"Misturar energéticos com drogas aumenta o risco de danos que podem levar à morte", afirmaram os pesquisadores.
O relatório da agência recebeu críticas imediatas de um grupo de fabricantes de energéticos, bebidas que contêm cafeína ou guaraná e outros aditivos.
O fato de que quase a metade das hospitalizações foi de pessoas que consumiram álcool ou drogas ilícitas "fez do consumo de energéticos um fato irrelevante", afirmou a Associação Americana de Bebidas.
O grupo afirma que a maioria dos energéticos contém metade da cafeína de uma porção similar de café. 

FONTE: Folha.Com - 27/11/2011

Especialistas discutem se pais devem permitir que seus filhos bebam vinho

DÉBORA MISMETTI
EDITORA-ASSISTENTE DE "SAÚDE"

Foi em uma festa de Natal em família que o paulistano André Di Napoli, 42, experimentou vinho pela primeira vez. O empresário tinha entre 15 e 16 anos na época.
"Vi as pessoas brindando, celebrando e pedi para experimentar."
Na família, de origem napolitana, comida e vinhos andam juntos. Na casa de sua avó, conta, as reuniões nos finais de semana tinham massa feita em casa. "Enquanto as mulheres faziam molho, os homens ficavam na varanda tomando vinho e quebrando a massa. As crianças queriam participar de tudo isso."
O costume de dar gotinhas de vinho para as crianças, ou a bebida misturada com água ou refrigerante, é comum em famílias de imigrantes italianos e portugueses.
O hábito, no entanto, contrasta com as orientações da maioria dos médicos. O governo do Estado de São Paulo também tem feito campanhas para reforçar a lei que proíbe o consumo de álcool por menores. A publicidade oficial sugere: "Em casa, o fiscal é você". A ideia, nesse caso, é a proibição total do consumo até os 18 anos.
Mas será que o veto protege o jovem contra um futuro de abuso e até dependência do álcool? Para o psicanalista e médico Jorge Forbes, a proibição não garante nada.
Em primeiro lugar, diz Forbes, é preciso diferenciar o consumo do álcool pelo álcool, como dos jovens que se reúnem em postos de gasolina para tomar vodca com energético antes da balada, do hábito de tomar álcool, especialmente vinho, durante as refeições.
"O primeiro deve ser coibido. Mas o hábito do vinho é uma prática com séculos de história, transmitida de geração para geração. Coibir essa tradição é levar o politicamente correto a um nível bobo", afirma.
Arthur Azevedo, pediatra e diretor da Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo, discorda.
"Dar vinho para menores deve ser proibido em qualquer quantidade e em qualquer circunstância. O fígado deles é muito sensível e pode ter lesões até com microdoses de álcool."
EDUCAÇÃO
A iniciação em casa, com a família, no entanto, é defendida por seus praticantes para transmitir não só a cultura da família mas o hábito de ter moderação ao beber.
"Se você se inicia com essa filosofia, dificilmente comete excessos depois", diz André Di Napoli. Seu filho mais velho, Thiago, de sete anos, já tomou algumas gotinhas de vinho.
A sommelière Alexandra Corvo, 33, segue a mesma filosofia. "Meu pai e minha mãe gostavam de vinho e deixavam a gente pôr o dedo na taça, não era nada demais. Quando morei nos EUA, tinha 16 anos e já tomava vinho em casa [no Brasil]. E lá não podia. Mesmo assim, os caras bebiam escondido até desmaiar. É melhor tratar a coisa de uma forma natural e ensinar a moderação."
EM VÃO
A educação dada em casa, no entanto, também não é garantia de um consumo regrado, segundo a psicóloga Lisiane Bizarro Araújo, professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e estudiosa do tema.
"Há países que não permitem venda de café a menores de 18 anos, porque faz mal, você vai habituar a criança a um psicoestimulante. A mesma lógica se aplica ao álcool. Quanto mais tarde a exposição, melhor. Mas pode ser positivo fazer uma exposição orientada mais tarde, perto da idade em que é permitido beber", diz Araújo.
No entanto, a psicóloga afirma que, segundo uma pesquisa recente que ela fez com universitários, o que a família fez pode não importar. "A tendência é seguir o grupo. Aprendendo a beber com moderação em casa ou não, aos 18, a tendência é que o jovem abuse da bebida no fim de semana."

FONTE: Folha.Com - 24/12/2011

Cigarro faz as defesas do corpo atacarem o pulmão

RICARDO BONALUME NETO
DE SÃO PAULO

Estudos em seres humanos já indicaram, e pesquisas em camundongos agora comprovaram, que é a ativação do próprio sistema de defesa do organismo pela fumaça do cigarro a causa da destruição de células do pulmão dos fumantes que leva ao enfisema.
Considerada uma doença pulmonar obstrutiva crônica, o enfisema tem como principal sintoma a dificuldade em respirar.
Essas doenças crônicas do pulmão deverão, na próxima década, tornar-se a quinta maior causa de morte no mundo, segundo o estudo publicado na revista "Science Translational Medicine".
O sistema imune atua contra invasores do organismo causadores de doenças, como micróbios. A defesa é feita por anticorpos que reagem contra substâncias presentes no invasor, os antígenos, e também pelos glóbulos brancos do sangue.
O corpo conclui que a fumaça é um invasor e entra em ação. Glóbulos brancos especializados em orquestrar a resposta imune são ativados pela fumaça e participam da cadeia de reações que destrói as células do pulmão.
Editoria de arte/Folhapress
BICHOS FUMANTES
O estudo foi feito com uma câmara que simulava o uso de cigarro pelos camundongos. Os bichos expostos à fumaça desenvolviam enfisema depois de alguns meses.
A líder do trabalho, Farrah Kheradmand, da Faculdade de Medicina Baylor, no Texas (EUA), afirma que o estudo provou pela primeira vez que as células de defesa dirigem a cascata inflamatória do enfisema causado por cigarro.
Ela lembra que esse tipo de teste não pode, por óbvios motivos éticos, ser conduzido em humanos, mas os resultados com os camundongos "fumantes" comprovaram achados anteriores da equipe com tecido pulmonar de pessoas com enfisema.
Depois do período do experimento, o pulmão dos camundongos ficou com níveis altos de citocinas, substâncias envolvidas na comunicação entre as células, como as do sistema de defesa.
Os genes desses glóbulos brancos ativados pela fumaça foram mapeados. "É como entrar em uma cena de crime", diz Kheradmand. A fumaça pode provocar o crime, mas algumas células agem como cúmplices, enquanto outras tentam limitar o dano.
A citocina chamada interleucina-17 agravou a inflamação, enquanto uma célula de defesa, a célula T gama delta, atenuou seus efeitos.
"A inflamação que produz o enfisema pode também levar ao desenvolvimento de câncer, uma hipótese que começamos a investigar."
A médica lembra que apesar do alcance cada vez maior do enfisema, não há terapia específica para a doença.
"Estamos mais próximos de achar um papel para cada célula que participa da destruição do pulmão em resposta ao cigarro", diz Kheradmand. Ela crê ser possível o redirecionamento da células "cúmplices" para interromper a inflamação progressiva.
FONTE: Folha.com - 20/01/2012

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Última centelha

“Não existe prazer na cracolândia, só alívio.” – Ruy Castro

Folha de S. Paulo, Quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

RIO DE JANEIRO - Houve quem achasse precipitada a ação da polícia e do governo de São Paulo ao invadir e desbaratar, mesmo temporariamente, a cracolândia. E imprudente, ao espalhar os usuários de crack por áreas da cidade até então a salvo do convívio com aquelas pessoas. Argumentam também que as ações de segurança e saúde pública devem ser feitas em conjunto e não adianta desgraçar ainda mais a vida dos infelizes sem uma alternativa de tratamento.
Todos os argumentos são válidos, inclusive este, mas há fatores a considerar. Enquanto ilhados naquela região de São Paulo, os usuários sentiam-se seguros dentro da sua miséria. Suas únicas relações eram entre si e com quem comerciavam para conseguir dinheiro ou droga. Era uma cadeia produtiva fechada, que poderia durar pelo resto da (curta) vida de cada um, e não os induzia a considerar a hipótese de lutar pela recuperação.
Ou a sequer considerar seu dia-a-dia na cracolândia, composto de síndrome de abstinência, mendicância, extorsão, indescritível imundície, animais peçonhentos, feridas expostas, assalto sexual permanente, estupro, gravidez, aborto, fome, doença e dor -tudo isso compensado pelos breves momentos de alívio produzidos pela droga. Não existe prazer na cracolândia, só alívio.
Uma ação como a da semana passada, cortando o elo entre o usuário e seus iguais, ou entre o usuário e o traficante, tende a ser algo desesperador para o dependente. Como ele não consegue passar muito tempo sem o produto, a quebra na cadeia, se repetida, pode levá-lo, num extremo, a tornar-se violento e ameaçador -e, em outro, a procurar ajuda, quem sabe internação e tratamento.
Expulsos de seu habitat, ainda que por algumas horas, esses dependentes têm uma chance de exercer a última centelha de razão que lhes resta.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

BAIRROS DE CLASSE MÉDIA ABRIGAM CRACOLÂNDIAS PRIVÊS

Traficantes alugam apartamentos e casas na Vila Mariana, Paraíso e Bela Vista para receber viciados
AFONSO BENITES, DE SÃO PAULO

Em um espaço do tamanho de uma perua Kombi, seis homens dividem três cachimbos de crack feitos com antenas de TV e latinhas de alumínio.
Cinco deles estão sentados no chão. São iluminados por um lampião que contrasta com a janela de vidros escurecidos. O outro está em pé. Observa a cena ao lado da porta. Ali, não há móveis, tapetes, tampouco cortinas.

Passa das 16h de uma sexta-feira nublada em São Paulo. O ambiente descrito acima poderia ser em uma rua da cracolândia, na região central da cidade, mas não é.
Trata-se do interior de um apartamento de classe média na Bela Vista, a poucas quadras de um dos mais famosos corredores gastronômicos da metrópole, a rua Avanhandava. Lá, usuários de crack alugam a sala, o quarto e a cozinha com um único propósito: fumar a droga.
Com três celulares no bolso, um senhor cabisbaixo, aparentando ter 60 anos, era o responsável pela venda das pedras e também pelo aluguel do imóvel. Preço: R$ 10 (a pedra), mais R$ 10 pelo espaço usado para o consumo.

Antes mesmo da operação da Polícia Militar, que cercou a cracolândia na semana passada, a Folha percorreu, nos últimos seis meses, bairros como Vila Mariana, Bixiga, Paraíso, Penha e Bela Vista.

Nesses locais, a reportagem encontrou casas e apartamentos onde funciona um esquema até então desconhecido das autoridades, as cracolândias privês.
Dentro do apartamento da Bela Vista, o cheiro, uma mistura de tabaco, fumaça, óleo de lampião queimado e suor, é forte. Dois jovens estão alucinados. Acabaram de fumar a terceira pedra do dia. Entreolham-se e parecem apavorados, sem motivo aparente.
Um acaba de dar seu primeiro trago. Os outros três observam. Eles fumam cigarros. Esperam a vez para terem a sensação que tanto aguardaram após uma manhã inteira de trabalho em uma loja de informática ali perto.

As cracolândias privês são extremamente lucrativas e seguras para o criminoso. Ele ganha duas vezes: na venda da droga e na locação da área.
Para o usuário, a maioria homens de classes baixa e média, com idades entre 18 e 35 anos, de diferentes profissões, é algo discretíssimo.
Nesses ambientes, ele consegue fugir dos olhares de reprovação de moradores e também do controle policial.
Para entrar nesse submundo, é preciso ser apresentado por algum conhecido do traficante. Deve-se seguir a principal exigência do local, só consumir a droga vendida ali.
"Fique esperto, aqui não entra pedra [de crack] de outro lugar", alerta o traficante.

LUZ DE LAMPIÃO
A Folha visitou cinco imóveis, entre casas e apartamentos. Em dois deles, a reportagem entrou acompanhada de um usuário, em tratamento, que conheceu na cracolândia enquanto apurava outra história. Ele só aceitou apresentar o repórter às cracolândias privês porque diz estar indignado com a quantidade de jovens viciados na cidade.

À primeira vista, por fora, não é possível perceber que em qualquer um desses cinco lugares haja venda e consumo de drogas lá dentro. Os apartamentos, na Bela Vista e no Bixiga, são iluminados por lampiões. Possuem pequenas brechas nas janelas, para não intoxicar quem está trancado lá. As portas permanecem quase o tempo inteiro fechadas.

Para ter acesso a eles, é preciso subir dois lances de escadas. Na sequência, deve-se comprar a "pê" (pedra de crack) vendida na própria escadaria e pedir que o vendedor autorize a entrada -vale registrar que o repórter não comprou a droga.

Já as casas, ou estavam abandonadas e foram invadidas ou haviam sido alugadas pelos traficantes por preços baixíssimos por conta de seu mau estado de conservação.
Elas estão na Vila Mariana, Paraíso e Penha. Os muros têm mais de três metros de altura. Os portões não têm brechas, o que impossibilita que alguém, do lado de fora, observe o que acontece ali.

A casa da Vila Mariana não é imunda como os cortiços fechados pela operação da polícia no centro paulistano.
A morada é simples. Fica em uma rua bem arborizada, próxima de um posto de gasolina, rodeada por prédios residenciais. Dentro dela, poucos móveis. Uma mesa e duas cadeiras na sala, onde ficam o "patrão" ou seu subordinado. Ao todo, são 11 cômodos improvisados, transformados em quartos, coletivos ou individuais. São divididos por finas paredes de madeira compensada.

Há dois tipos de cracolândia privê. Nos apartamentos, o usuário compra a pedra com o traficante e a consome em um dos cômodos. Na outra, vive no lugar, chamado "mocó". Pode tomar banho, comer, dormir. O valor varia conforme a forma de pagamento. Adiantado em dinheiro, R$ 210. Se for pagar no fim do mês, R$ 300.