Folha de São Paulo - Ruy Castro
RIO DE JANEIRO - Há décadas tenho privado
com alcoólatras em vários estágios de dependência. Todos resistentes a
tratamento. Um deles nem admitia o assunto, mesmo quando os vômitos
matinais de sangue já tornavam sua situação desesperadora. A
eventualidade de uma internação, com a interrupção do fornecimento de
bebida, lhe era intolerável. A alternativa podia ser a morte, mas ele
não parecia com medo. A dependência é mais forte do que o medo da morte.
Quando se trata de álcool, a dependência leva anos para se instalar,
durante os quais o bebedor tem tempo para constituir família, aprender
um ofício e afirmar-se profissionalmente --até que a progressão da
doença acabe com tudo. Às vezes, uma última centelha de consciência o
faz procurar ajuda. Se esta vier a tempo, e o processo
destrutivo for interrompido e controlado, a pessoa, com esforço e
sorte, pode retomar sua vida e tentar devolvê-la ao que era antes de a
dependência ter se instalado.
Anteontem, vi pela TV os dependentes de crack da favela do
Jacarezinho, no Rio, ocupada pelos militares, sendo levados pelos
assistentes sociais. A maioria, inconformada, pedalava o ar com as
poucas forças que lhe restavam --ninguém queria sair do lixão onde
morava. No fim do dia, todos (exceto, por algum tempo, os menores)
estavam de volta à cracolândia.
A ideia da internação compulsória para os dependentes de crack não
deveria se confundir com as normas de internação para outros tipos de
dependência. Ao fim e ao cabo, todas as dependências são iguais, mas a
do crack não tem começo ou meio. Já começa pelo fim.
Não pode haver internação "consentida" de um dependente de crack,
pelo simples fato de que esse dependente não tem mais o que consentir ou
negar. Para ele, a morte não é nada diante da ideia de ficar sem o
produto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário